CANTAR NA RÁDIO É A BRINCADEIRA MAIS SÉRIA

CANTAR NO RÁDIO É A BRINCADEIRA MAIS SÉRIA

Eu, menino nascido no finalzinho dos anos sessenta, morei na encosta de um grotão, lá, Serranópolis de Minas. Para ser bem mais preciso: Caeté. Lá, meus brinquedos eram feitos de madeira. Esses, mal acabados por falta de ferramentas. Lá, eu brincava com o cachorro vira-lata de porte alto e respeitado pelos vizinhos. Aliás, meus vizinhos mais próximos moravam a oito km dali.

Vivi oito anos grudado nestes sonhos: ver televisão, assistir partidas de futebol e cantar no rádio. Lá, eu brincava com os sons de barulhos de várias cachoeiras e imaginava que do outro lado da serra estaria o urbano mundo dos seres alfabetizados.

No mês de fevereiro, de 1975, quando completei os meus sete anos, eu construí o meu primeiro instrumento musical: uma lata de óleo quadrada cordeada com cabelos de crina um cavalo cardão. Da janela da humilde casa, enquanto eu tirava umas notas fora de pauta de partitura, minha mãe me olhava cantando músicas de minha terra. Ela, ela sorria contente. Lá, eu não brincava com coisas industrializadas. Eu corria de cavalo. Lá, eu pegava corrida com os cachorros e, lá, eu cantava com os passarins pousados nas aroeiras do fundo do quintal.

As luzes de lá de minha casa, à noite eram, ora de lua, ora de lamparina enfumaçada de querosene. Durante o dia, no sol forte do sertão eu estava lá fora. Quando eu estava dentro da simples casa de enchimento, via o sol brechar pelos vãos dos adobes e nas cacundas das telhas surradas pelo mesmo.

Lá, brinquei em muitas tardes de barquinhos nas enxurradas. Eu jogava qualquer pedaço de qualquer coisa em qualquer corredeira. Nunca joguei papel, nem plástico. Minha mãe remendava roupas na varanda assobiando as melhores melodias que ela ouvia no rádio e eu decorava cada acorde e letra para cantar enquanto eu subia os morros à procura do gado para apartar. Acompanhado do meu fiel cachorro de nome, Dublê, eu corria para chegar com o sol ainda de fora para não me perder nas capoeiras ralas dos morros de meu Caeté.

Minhas brincadeiras eram muito sérias: “topear garrote” e falava pro meu pai que eu queria cantar na rádio Record de São Paulo, até que em 1995 eu me apresentei por três vezes na TV Record. Quando eu cheguei à avenida Miruna – 713, no Aeroporto, em São Paulo, eu recordei o que disse ao meu Velho tempos atrás. O tempo avoou. Alembro como se fosse hoje. O meu pai retrucou-me, assim, meio que ralhando: “... Arre! menino, não fala bestêra, vai... vai cuidar do gado...” O gado já se foi em caminhões. Outras reses morreram de sede no sertão das minhas Minas Gerais alterosas. O eco do aboio se transformou em barulho de rodovia e eu vimebora.

Aqui, fora do bando, até hoje não conheci os brinquedos dos meninos urbanos iguaizinhos aqueles de minha época. Eu menino lá no grotão de meu Caeté. Hoje, para afogar a saudade e a falta de meu tempo de infância, escrevo versos e boto melodias, ora tristes, ora, alegres. Junto tudo isso e boto no disco, “Chão e Raiz”, que chamo de quase filho. Aí, começa toda uma luta para levar adiante uma história de um sertanejo nato. Mas, aí, às vezes, volto à estaca zero. Hoje, a minha brincadeira, custosa, continua muito mais séria que as de antigamente. Volto aos longínquos anos setenta e sei que ainda me falta algumas ferramentas como as que faltaram nas feituras de meus primeiros e rústicos brinquedos. Fisicamente, não posso tirar do mato a matéria-prima para eu carapinar o meu brinquedo mais sério e o mais precioso. Uma, que disco de pau só roda e toca e canta em cocões de carro de boi. E outra, porque moro aqui no meio desta selva de cimento frio e calculista... ...mas, apesar da cruel moenda desta máquina, cidade grande, cá, estou eu trepado no espigão do paiol de minha memória fotográfica que é dotado de um zoom extraordinariamente cristalino, e, diante da lente de minhas viçosas recordações vou debulhando-me em: singelezas, suspiros, carquejas, saudades, pelejas, emoções, soluços, e, e canções...

Crônica escrita por uelton Nogueira –De Alma sertaneja. Exímio poeta, prosador, cantador, tocador e arranjador musical

Uelton Nogueira
Enviado por Uelton Nogueira em 16/09/2011
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