Zefinha, a nordestina
Zefinha, a nordestina
Sou Zefinha, a nordestina, filha de pai e mãe do sertão, do sertãozinho pobrinho de minha terra, que me viu nascer, crescer, viver e quase morrer... Sou Zefinha dos pés ralados, dos cabelos mal penteados, da barriga seca esvaziada de comida, mas do coração forte, do grito heróico pra sobreviver e tentar crescer de tanto morrer, mas com tanta vontade de viver... Sou conhecida como "Zefinha Macacheira", aquela que no fundo da rede faz sonhos, vive de esperanças a vida inteira, com a cabeça zoando asneira, mas lá dentro sou fortaleza, assada no calorão do chão do sertão, com terço na minha mão, rezando pro "Pai do Céu", pra "Virgem Mãe", pedindo um pouquinho só poder comer, recitando alto a oração. cantando depois"Luar do Sertão", do meu Padim Catulo da Paixão.
Sou a Zefinha do "Padim Ciço Rumão Duarte", que me acolhe assim, com meus pés no chão, mal vestida, com roupa encardida de chita, indo sempre em romaria, caminhando pelas agruras do chão de terra seca, rezando, orando por um pouquinho de chuva, que do céu vem molhar e alegrar as plantinhas do lugar.
Cresci assim, nasci assim, mas no meu peito rola a vontade de subir, de modificar tudinho desse lugar, voar pra longe desses caminhos, virar gente que pensa, gente que quer, gente que sente amô, sem dor e aflição no coração. Ser passarim de arribação, que nem precisa de chão, voando, cortando as nuvens do coração, deixando pra trás as palhas secas da desilusão, curtindo meus sonhos sem pecar por desejar, ser mulher do saber amar, gozar e suspirar as querenças do desejar, podendo namorar e, quem sabe, casar...
Minha voz é arrastada, com palavras mal formadas, com a cabeça um pouco desmiolada, mulher rude, que tem no pensar só poder se modificar, sair da chita pra seda, do comer até se empanturrar, do cantar só as modinhas doutro lugar. É isso na minha crença, trabalhar, pelejar, lutar pra poder andar com sapato de mulher beleza, não de chinelo de couro cru das muié das feira daquele lugar, me perfumando e cheirando os cheiros comprados, cheiros que me dão vontade de continuar...
E ela veio viajar, de ônibus feito gente, deixando pra todo o trás sua vidinha e se encaminha sobre as poeiras, que se levantam do chão como para homenagear sua nova passança, noutros céus fora dos arraiás do sertão daquele lugar... Lá vai ela, destemida, com brilhos no olhar, coração a palpitar, suspirando amor, esperanças e sonhos de felicidade... Vai de ôlho na estrada, vendo no seu vôo rasteiro o onibus comendo poeira e ela só pensando besteira, só na idéia do seu pensar, vai matutando, vai cantarolando, vai implorando a cidade grande se avizinhar...
Êta mulher do nordeste, dos cabras da peste, das macacheiras, das paçocas da vida inteira, correndo atrás da vontade de um dia poder seguir, pra bem longe, pra sua terra encantada, por muitos embelezada, sua terra do litoral, onde o mar perde seu infinito, num nunca acabar aflito, numa vontade bendita, dos seus sonhos salgados das ondas, que vêm balançando a salmoura e acariciando as boas vindas, se embriagando e só sonhando...
Zefa, Zefinha do interiô, dos costados suado, dos peitos gelado, cherando a só flô, cheia de cor, balançando os cabelos embaraçados, de cachos amontoados. Chega ao Rio de Janeiro, dando gritos de animação, pulando seus pés no chão, mas chegou... Para onde vai, nem tem idéia, dorme mesmo na praia, enrolada com os cobertores de areia. as faces molhadas de lágrimas, salgadas, suadas, puras, sentidas com o coração, que vertidas com emoção, fez de sua coragem. uma tremenda força de vontade...
Saiu do seu sertão, com seus jegues cansados, desesperados, estropiados, para um pulo tão arriscado, com carros pra todos os lados, lindos de estarrecer. Viva essa brasileira que, enfrentado a vida, tão sofrida, eleva-se à condição de ser humano, arregaçando as mangas para sobreviver dos seus trabalhos, do seu viver... Vai vencer, tenho certeza, vai um dia até acontecer, sendo mulher que nunca há de se arrepender do seu sangue rubro, batalhador, cheio de amor...
Maria Myriam Freire Peres
Rio de Janeiro, 23 de março de 2005