Amizade
Todos têm um bichinho de estimação. Mesmo que imaginário, ou apenas em forma explícita de desejo, lá no fundinho do coração existe um bichinho de estimação. Eu tive muitos – bichinhos e corações. Amei tantas espécies: periquito, lebre, peixe de aquário. Mas os cães, estes seres cândidos, sempre estiveram comigo. Ainda menina tive como parceira uma cadelinha cujo nome não lembro. Recordo mesmo é sua forma viva, não abstrata. Éramos feitas uma para a outra. Ela compreendia que eu, mesmo nos dias mais tristes, era capaz de amar. Então vinha para mim, funcinhando meus pés com seu fucinho pequenino, roçando sua cabecinha nos meus dedos, me ensinando que amar é ganho e jamais desistindo de mim. Tínhamos momentos raríssimos de infelicidade. Bichos não conhecem a escuridão, por isso onde quer que estejam há luz. Com ela era assim. Havia ocasiões em que eu a punha no colo, a embalava feito uma criança. Mas nos divertíamos mesmo quando eu deitava no chão e, ao som de seus latidos, gargalhava, entrando em contato com o que de mais primitivo há em mim.
Tê-la sempre fora confortável, eu gostava de acariciar aquela forma una e fiel, capaz de, com seu amor incondicional, proteger-me das armadilhas do mundo. Ao lado dela, eu era uma filha querida, não temia tantas coisas como hoje temo. Vivemos muito em pouco tempo. O tempo, aliás, quando se está feliz, é rarefeito. Saíamos à noite, eu observando o luar e ela, sendo cheirada no rabo pelos cachorrinhos, curtia o erotismo que a natureza lhe deu, sem nenhuma vergonha, nojo ou defesa. Se pudéssemos ser sempre assim, alguém com um bichinho de estimação... A vida seria menos grotesca, as cidades menos fantasmagóricas. Cães vivem suas vidas sem ódio, vivem do óbvio, mas jamais do imoral. São rendição, veja o caso do homem que matou seus inimigos, mas não matou o cachorrinho que, amarrado numa corda, magro e sem mágoa, lhe devotou olhos puros.
No dia em que a cadelinha, como uma fita prestes a se romper, encerrou a brincadeira, a menina entendeu que a morte é pretexto para coisa maior. Ali, mortinha, fria, indefesa... enrolei-a numa toalha branca e a pus numa caixa que atirei no rio. Foi como se ela jamais existisse. Hoje amo outros cães, ela já não faz parte, já não corre quando me vê. Amá-la foi como amar a mim mesma. Muito mais misterioso, foi como amar algo.