Mar
O mar, faz um tempo que não o vejo, lembro que quando pequeno, ele foi meu maior mistério. Mar, imenso, uma existência não humana. A palavra por si só não dá conta de sua magnificência. Lembro vagamente de meu primeiro contato com o mar, fiquei perplexo diante de tamanha mansidão, o mar me olhava, tive medo, pensei que meu corpo pequeno de criança poderia ser engolido com facilidade por aquela correnteza eufórica, a idéia de me perder no oceano me apavorava, a grandiosidade arrogante e desafiadora estava ali, eu e o mar, postos frente a frente. Meus pais queriam mergulhar, mas não podiam me deixar sozinho na praia, então decidiram me levar junto, eu relutei, eles me arrastaram. Devia estar nas costas do meu pai quando ele entrou no mar, pude sentir a água gelada batendo em minhas pernas, a água batia e voltava, como uma brincadeira. Estava começando a me acostumar a ele.
As outras crianças perambulavam às margens a procura de conchas e pedras, as conchas não me interessavam, eu ia atrás de pequenos cacarecos, colares de miçanga, pedaços de placas, medalhões, garrafas de vidro, eram presentes que ele, o mar, me oferecia. Eu queria conhecer o mar, esses cacarecos em minha mente fantasiosa eram fragmentos de naufrágios e desastres marítimos. Era difícil andar sobre a areia molhada, foi então que subitamente eu descobri que, para conhecer o mar devia me juntar a ele, unir os mistérios entregando-se um ao outro, carregado com o medo infantil caminhei acanhadamente em sua direção. A água salgada é de um frio que arrepia as pernas. O cheiro, de uma maresia tonteante. Vou entrando, minha presença sólida divide o mar ao meio, a gelidez se opõe, as ondas me arrastam de volta à praia, aceito essa oposição como um desafio e volto correndo ao mar em oposição às ondas que me abraçam e se partem. A água me cobre o torso, a gelidez contra o peito causa a sensação de estranheza, eu me desconheço, torno-me anônimo como uma pedra, só assim eu percebo que lutar contra as ondas é lutar contra uma força maior, portanto, é uma resistência inútil, por isso me entrego em anonimato, não sou nada, esqueço-me no balançar das águas calmas, o mar, e seu mágico embalo. Nesse encontro e em todos os outros eu fui o mar, fiz parte dele. Eu era água corrente e salgada. Abrir os olhos no mar é difícil, assim como fora dele. Imerso e perdido na liquidez gelada eu sabia que estava cumprindo uma coragem. No mar eu não tinha nenhuma função a não ser a de me misturar ao sal. De qualquer forma, o mar sempre me devolvia à praia, esgotado, sempre depois de ser o mar minhas pernas fraquejavam, obrigando-me a desabar o corpo – agora pesado, com o peso de uma fadiga imemorial – sobre a areia, a garganta constringe, os olhos ardem de sal secado pelo sol, impossível deixá-los abertos. E ali eu permaneço, esgotado, feito um morto. Sou sal e areia. Nada além.
É isso que me falta, ser o mar outra vez, me entregar à tempestade que sopra inquieta no interior de sua água salgada. Preciso que o mar me leve, lave. Que as ondas me arrastem como escombros de uma catedral. Quero tomar o mar em goles grandes, para poder tê-lo em correnteza por dentro.