Amor clandestino

Como quem carrega algo secreto, proibido, a menina segurava no colo a caixa de papelão que estava lacrada, mas tinha uns buracos que ela mesma fizera com tesoura para “os bichinhos terem ar”. A viagem era rápida, talvez quinze quilômetros, talvez pouco mais. No entanto, estava escrito na plaquinha ao lado do banco do motorista: PROIBIDO ANIMAIS. SUJEITO A DESCER DO VEÍCULO. A menina leu o aviso com medo, mas seu instinto maternal dava-lhe uma ousadia que como menina apenas não poderia ter. Passou pelo motorista, que a olhou bricando sem saber que aquela menininha de cabelos cacheados e tão baixinha era, na verdade, uma dissimulada carregando nos braços a caixa proibida. A avó, que era gorda e tão boa quanto uma gata siamesa, sentou-se ao lado dela e pediu que fosse discreta: “Se o motorista nos pega, atira os bichinhos pela janela”. Ela ouviu as palavras da avó com angústia, não poderia perder os filhotes, eram dela, sentia como nunca sentira antes que eles lhe pertenciam e sem eles ficaria tão triste que morreria. “Oh, vovó!”. Uma lágrima escorreu curta pelo canto de um de seus mínimos olhos. Pos a caixa debaixo dos pés, tirou da bolsa uma manta e a cobriu.

O motorista deu a partida, a viagem começou. Pela janela, paisagens campestres, mato, árvores, vento, cheiros. O motorista freou abruptamente. “Meu Deus! Ele descobriu tudo”, pensou a menina, o coração gelado de medo, já temendo perder os filhotes, morrer de tristeza sem eles. Mas era apenas uma aranha que atravessava a pista, tranquila e sutil, sem nenhum ódio ou tédio, como são as aranhas. Sem importar-se com a calamidade humana ela atravessava, seguindo seu caminho, sua rotina. O motorista levou um susto, deu novamente partida no ônibus e emendou a contar seus traumas com aranhas. “Bichos do diabo”, ele dizia, gesticulando e falando alto. Os passageiros pareciam inquietos, conversavam, comiam. A menina era puro medo. Enquanto a avó cochilava, ela vigiava os filhotes, observava o motorista: “Deus queira que ele continue assim distraído”, clamava.

Quase metade do caminho e a caixa começava a mexer. Latidos finos, contínuos. A menina arrepiou, num desespero súbito pos a mochila sobre a caixa para abafar o som. Em vão. Os filhotes haviam dormido todo o tempo e agora queriam comunicar-se – mesmo os que pouco tempo de vida têm, necessitam deste contato que dar-se de dentro para fora: estariam eles com fome?, perguntou-se a menina. Ela então abriu rapidamente a caixa, sussurrou algo como “xiiii” para que os filhotes ficassem quietos. Em vão. Os latidos ganhavam força, embora finos, eram estridentes. A menina estava agora no ápice de seu desespero, de seu medo, de sua carência. Tão pequena e impotente, nada poderia fazer se o motorista, que no ônibus era a lei, quisesse jogar pela janela os filhotes. “Não, não”, lamentava a pobre menina, nada mais que uma criança.

De tudo ela tentava. Pos a caixa no colo e tentou embalar os filhotes, talvez voltassem a dormir. Em vão. Ainda latiam. Já em lágrimas, em contato com o mais primitivo dos sofrimentos, ela cutucou a avó. “Acorda,vó, acorda!”. A mulher despertou e, percebendo as lágrimas no rosto da neta e dando-se conta dos latidos dos filhotes, gargalhou: “Calma, querida. Ninguém vai tirar os bichinhos de você”. A menina fez uma expressão meio estática, quase como se não acreditasse que jamais lhe tirariam seus filhotes. Sorriu desconfiada, mas muito alegre e aliviada. A mulher, jocosa como só as avós são, alertou para que a menina pusesse a caixa debaixo dos pés. “Não deixe ninguém ver. Se o motorista escuta, atira os bichinhos pela janela”. A menina assentiu com a cabeça e, abrindo de leve a tampa da caixa, sussurrou para os filhotes que já não latiam, minúsculos, lá dentro: “Xiiiii, meus amores” – mesmo com tanto medo não podia deixar de amá-los e era inevitável não sentir o coração aquecer olhando aqueles miudinhos existirem cheios de esperança naquela caixa.

A menina pos os pés sobre a caixa, segurando com a mão o lado esquerdo do peito que tamborilava desesperado. Ainda que tivesse de passar por toda aquela angústia, ela não desistiria de proteger o que era seu, aqueles a quem irremediavelmente amava.

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Taylane Cruz
Enviado por Taylane Cruz em 06/09/2011
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