Um Natal na terra do nada…(Conto baseado em factos reais...)
“A Metamorfose atingirá o auge
Os homens tornar-se-ão em merda
Meu Amor, olha o céu e esquece
São os Ventos de Guerra”
Num tempo a que alguém chamou de “verdes anos”, num tempo onde a vida deve ser plenamente vivida antes das agruras dessa vida projectar sobre nós a sombra de seriedade e de desilusão que desfaz muitos idealismos e nós torna de forma quase ou mesmo definitivamente demasiados sérios e desencantados, nesse tempo onde deveria viver os últimos suspiros de ingenuidade plena de uma existência, dei comigo a passar longos meses num quartel, no hoje extinto serviço militar obrigatório, uma aberração, pois o simples facto de ser natural da minha terra implicava esse serviço, mesmo em tempos de paz…Claro que havia forma de adiar esse serviço, ou mesmo de o evitar, mas pecadilho onde misturei ignorância e ingenuidade, fui mesmo obrigado a cumprir quase 8 meses de tropa…
Ainda alimentava a ideia de que entre homens de armas havia laços de fraternidade e de camaradagem que ficavam para o resto da vida…mais uma ingenuidade alimentada por certa literatura e certos filmes…No quartel onde cumpri esses meses havia uma coisa em comum entre os homens: imensa raiva por estarem ali…o que aliado a uma cultura de violência, de bestialização, destinada a fazer de nós soldados, teoricamente prontos a defender a pátria, fez de nós garotos de violência fácil e de hábitos ríspidos…Nem mesmo nos exercícios militares onde essa camaradagem deveria vir ao de cima ela existia, ou melhor, existia quando os oficiais a impunham e não de forma natural…De honra militar, nem sombra, a ética era algo que devia existir num manual teórico, mas não ali…apenas tal em grupos de 2/3 homens dispersos uns dos outros, não uma coisa grupal, de conjunto…a piorar ainda mais as coisas o facto de se contarem os tostões fazia com que existisse alimentação e pouco mais…tudo o resto era racionado, desde fardas a balas…que armas não faltavam…velhas armas sobreviventes das guerras coloniais, imensas, milhares de armas, gastas, que fazia com que os exercícios de tiro fossem divertidos, porque muitas vezes o camarada da direita acertava no alvo do da esquerda, e vice versa, não por um gesto altruísta de ajudar o camarada, mas porque as armas estavam de tal ordem gastas que o desvio das balas era de metros, e não de milímetros…
E foi neste cenário que vivi, e que lá me adaptei, vestindo a pele de lobo quando me sentia um cordeiro…vestindo a pele de lobo para sobreviver entre os lobos, para não ser devorado pelos lobos…
Foi neste cenário que passei o meu primeiro Natal fora da família, ou dos amigos…Deram-me a escolher entre passar o Natal no Quartel ou o fim de ano…O fim de ano estava apalavrado há algum tempo, e por isso a escolha recaiu no Natal…
Mas cedo bem me arrependi…: apesar de não ser muito religioso, era um homem de família, e o Natal sempre fora passado em Família…Pouco tempo antes de entrar de serviço nocturno, telefonei para casa à hora de jantar…o telefone não foi atendido…lembrei-me então que esse Natal seria passado em casa de um familiar que não tinha telefone…Telefonei para o meu amor…falámos imenso, mas eu tinha que ir trabalhar, e por isso essa conversa parece que nada durou, quando durou e muito significou, apesar de me ter sabido a demasiado nada…E de repente no meio de muitas dezenas de homens senti-me o homem mais solitário do mundo…Durante as horas de serviço, estive bastante ocupado, e não pensei em nada, mas quando este acabou, quase ás 0 horas, comecei a sentir de forma avassaladora esse Natal, sem nada, sem gente…Cenário ainda mais desagradável pelo facto do tipo que me ia render estar de péssimo humor, e para lhe passar tal decidiu embirrar comigo de forma violenta…percebi tal, mas aquela era a Noite de Natal, apesar dele procurar o confronto, calei-o com um segredo que ele tinha, e que circulava no quartel entre poucos homens, um segredo que se revelado o iria destruir por completo…Ficou entre nós, e ele acalmou-se…sabia que eu sabia, não lhe disse que o iria revelar, mas o facto de eu saber meteu-lhe de tal ordem medo que até ao fim da tropa ao passar por mim metia os olhos no chão e nada me dizia…Por uma questão de honra nunca revelaria tal, mas tive que usar o poder de informação de que dispunha para obter um pouco de paz…Os fins nem sempre justificam os meios, mas naquele noite justificaram de todo… com essa paz temporária, ao invés de me ir juntar aos meus, e fazer o que as famílias fazem na noite de Natal, ia-me recolher no dormitório, camarata, adormecer o mais depressa possível e acordar no dia seguinte, com a sensação que o pior teria passado…a hora mágica do Natal seria passada a dormir, e por isso não a sentiria…talvez sonhasse com ela, mas não a sentiria…
A meio do caminho que levava ao dormitório estava a messe dos oficiais, e ao passar nessa estrada, ninguém se cumprimentava, os homens estavam metidos consigo mesmos, era Natal mas poderia ser outro dia qualquer…Mas ao passar em frente da messe, uma voz chamou o meu nome, uma voz estranhamente familiar…surpreendido voltei-me, e reparei que quem me chamava era o oficial mais sério do Quartel, mais honrado, mais ético, mais humano…Militar por opção, da escola de oficiais de onde sairiam os oficiais que assumiriam os cargos de chefia ao mais alto nível quando chegasse a altura…oficial por paixão, por acreditar nos ideais dessa profissão, justo e ponderado, sendo por isso que mesmo entre os seus pares era um homem solitário…Ocasionalmente reparara em mim, quando me apanhara a conversar com outro camarada sobre esses valores que eu não encontrava ali…Nada dissera, escutara apenas…E só me apercebi que escutara naquela noite de Natal…teria mais 3 anos do que eu, era um tipo imponente fisicamente, uma espécie de gigante, que saíra do conforto da messe aquecida pela lareira, e que o protegia do intenso frio, para me dirigir palavra. Acabara o serviço, e ia passar a noite de Natal a comer uma boa ceia, expressamente concebida para o oficialato, e a ver vídeos, até que a manhã despontasse e aquela noite fosse apenas mais uma noite entre tantas outras noites…Mas de repente, estava à porta, e entre os vários soldados que passavam, este tenente de elite chamou-me apenas a mim…Pensei que me iria pedir algo, que isso de ter terminado o meu serviço de nada significava se um oficial assim o entendesse, e foi com este pensamento que me aproximei…o que se seguiu surpreendeu-me…
-Quer passar a Noite de Natal na minha companhia…? – Perguntou-me…
Estupefacto não percebi muito bem…ele, homem sensível, habituado a ler as expressões dos homens, esclareceu-me…
-Aqui na messe…fazer-me companhia…quer-me dar essa honra…?
Devo ter ficado com um ar ainda mais atónito…: um soldado nunca entrava na messe dos Oficiais sem ser para servir estes, e “quer-me dar essa honra” era um coloquialismo utilizado entre os pares, e jamais entre um Oficial e um soldado…ele sorriu, percebeu, e por gestos indicou-me de forma clara o caminho para a sala principal da messe…Eu senti-me particularmente mal por outro motivo: devido às carências monetárias, a roupa, as fardas, eram poucas, e eram lavadas em casa, na nossa casa…Ora eu não ia a casa há algum tempo, e a farda estava imunda…ele sabia disso, e no entanto pediu-me de forma gentil que me sentasse no caro sofá de couro, que destoava com a miséria de todo o quartel…Sem saber o que fazer, fiquei em posição hirta, defensiva…ele mais uma vez percebeu, e pediu para me sentir à vontade, e para me servir…A pequena mesa à minha frente dispunha de um leque de doces e outras comidas típicas de Natal, e ele fez questão que me servisse…Por uma questão de educação, servi-me do mínimo, ele comeu ao mesmo tempo, e então começou a falar, e eu a falar com ele…
Deixáramos de ser um soldado e um Oficial, passáramos a sermos apenas dois homens a passar um Natal longe de casa…
Fumámos e falámos de valores, ou da falta deles, falámos de honra, da honra quase extinta, falámos de armas, como os garotos falam dos seus brinquedos, falámos da família longe, falámos de amores, falámos da vida, e por um breve tempo as barreiras deixaram de facto de existir pela consonância de ideias, de ideais, e passámos a sermos Irmãos de Armas…Até que as horas passaram, nos rendemos ao cansaço, surgiu uma pausa…vimos em vídeo um filme recente, e eu fechei os olhos e de repente abri os mesmos…olhei para o relógio…tinha-se passado mais de uma hora…e ele olhava-me com ar divertido, apesar de eu me ter desfeito em desculpas…tranquilizou-me…poderia dormir à vontade, a alvorada ainda era distante, e eu só precisava de estar na formatura dos homens que estavam no quartel e que ele iria comandar…até lá o tempo era meu, e eu podia fazer dele o que bem entendesse…e assim foi…algum tempo antes da formatura, sai, sem os meus camaradas me virem que os laços oficiais, institucionais entre um soldado e um Tenente deveriam ser mantidos, porque ele poderia passar a ser mal visto por ter dado um lar temporário a um homem, por ter dado o abrigo que ele precisava, por o ter ouvido, por falar, por partilhar a vida e alguns dos seus valores que tanto apreciávamos mas que tanto estavam afastados daquela terra de nada…
Voltámos a ser soldado e Oficial, nada em nós denotou aquela camaradagem, a não ser o discreto sorriso de cumplicidade que trocávamos sempre que nos cruzámos…
Dai a meses acabou a tropa, eu segui por outros caminhos, e ele os dele…
Nunca mais o vi, nunca mais soube dele…
Sabia que se ia casar dai a meses, possivelmente hoje está a trilhar essa carreira de excelência, possivelmente é pai de filhos e de filhas a quem transmitiu os seus, os nossos valores, garantia de que, apesar de em via de extinção, eles nunca seriam de facto extintos, honra, não no que se diz, mas nos gestos, camaradagem não porque vem nos manuais, mas porque se sente…um homem que no ocaso da minha existência me deu parte da luz que necessitava, que me deu forças, e uma lição de vida que ainda hoje dura, e que durará para mim para sempre…
Porque um homem sem honra, não é um homem…chamem-lhe o que quiserem, mas homem não o será…
Porque esse Oficial provou-me que muitos homens podem ser de merda, mas nem todos são de merda, porque basta haver um homem honrado para tudo valer a pena…
E não, a honra de que falo não é uma questão moral, é uma questão de personalidade e civilizacional…
Por todos esses motivos, tive e continuo a ter excelentes noites de Natal, continuo a conhecer gente honrada, mas aquele Natal e aquele oficial fizeram daquela noite na terra do nada uma das mais belas noites de Natal de toda a minha existência…