A vida na vila - III
Seu Antônio acordou cedo. Ainda estava escuro. Trovões, ainda brandos, eram ouvidos. O nevoeiro não permitiu que Seu Antônio enxergasse muito além dos primeiros barcos amarrados no paredão do canal. O canal fazia a curva para direita, onde suas margens, um pouco elevadas, impediam a visão de barcos que estivessem passando ou ancorados ali. O vento trazia as folhas da amendoeira e algumas delas entravam pela janela da cozinha. Mas por instantes ficou ali. Olho no paredão, nas águas encrespadas do rio, e na luz do Duarte, um pescador que vivia no próprio barco. Duarte costumava vir para o outro lado da ponte quando as tempestades se aproximavam.
Seu Antônio tomou o casaco de lã, largado em cima da mesa e abriu a porta. Caminhou lento até a esquina, de onde podia ver melhor a ponte. Viu a charrete da mercearia terminando o trajeto até o outro lado, onde provavelmente iria tomar a reta do Pontal e seguir em direção as fazendas da serra. Passos mais rápidos e Antônio cruzou a rua em direção ao canal. E observou. Duarte tinha despertado e fazia sinal para ver se o amigo o podia ver. Agitava os braços com certo intervalo. Ligou o motor e tocou o barco em direção a ponte, mas passando rente ao paredão diminuiu a velocidade e veio deslizando bem devagar. Apontou a proa e jogou a corda para Antônio. Antes das defensas tocarem as pedras disse:
- Vem ela Tônio! Já avisei pra tirarem as redes... Mas ainda tem gente lá...
- Quem ficou? O Álvaro? Vi ele sair ontem à noite... - Antônio tentava se lembrar quais pescadores ainda estavam no mar para avisar as famílias. Mais alguns nomes vieram à sua mente: Pires, Jorge, Caixote...
Levou as mãos ao rosto. Tudo enegreceu. Felipe, seu filho, estava no mar. Mas onde?
Quando percebeu nas feições de Antônio um certo receio, Duarte não hesitou:
- Felipe ta no mar Tônio? - Disse enquanto apertava as amarras, procurando não encarar o amigo...
- Sim, está. - Sentou-se na mureta de pedras.
A tempestadade estava agora completamente em cima da baía. A chuva forte chegou prometendo ruas alagadas, deslizamentos e lama. Antônio ergueu-se. O vento, a chuva e a esperança. Confiante na experiência do filho e dos que estavam com ele, caminhou até a porta da Nossa Senhora dos Remédios, ajoelhou-se, persignou-se e parado ali por alguns segundos, pediu a Mãe que seu primogênito voltasse.
Mais alguns minutos e a enxurrada engrossou. O vento, enfurecido, arrancava os galhos das árvores, mandava as folhas longe e assobiava pelas persianas. O canto era macabro para todos que conheciam a origem daquela tormenta.
Antes de atravessar a rua, dona Neide já avistava o marido. Escondida atrás da porta, mantinha só uma fresta da largura de dois dedos. Viu Antônio vindo desde a porta da igreja. Entrou, sentou. Explicou tudo. Felipe havia prometido que voltaria antes. E se tivesse realmente voltado, não haveria de correr este risco. “O problema é a ganância!”, era o pensamento do velho. Todos sabiam que nesta época do ano haveria mais peixes. Mais dinheiro. No entanto o mar, este sim, estaria sempre mais agitado e imprevisível.
Marido e mulher se abraçam. A esposa diz: vai com Deus - passando a mão na testa do homem. Antônio sai de casa com os equipamentos necessários. Passa por Duarte que o segue. Ambos entram no barco do Duarte. Não é preciso dizer nada. Encaminham-se para o resgate.