Noite Feliz
Estranho todo esse movimento natalino. Parece que o mundo vai se acabar junto com o ano. De repente entendi o sentido das festas de fim de ano, o Natal tão próximo do Ano Novo. O Natal é o nascimento do Salvador, aquele que será sacrificado por nós, é o bode expiatório que sacrificaremos para ter um Ano Bom...
Comento com minha mulher a minha grande descoberta. No almoço, entre uma garfada e outra, expus a teoria do bode. Ela torceu o nariz, pareceu ficar ofendida. Disse:
- Espero que você não saia propagando por aí essa heresia... As pessoas podem não gostar. Bode é símbolo do mal...
Explico, pacientemente, que não se trata de um bode qualquer, e sim do bode expiatório, aquele que expia as nossas culpas.
Ela diz:
- Melhor trocar por cordeiro, o cordeiro pascal, mais de acordo com a liturgia.
Cordeiro, bode, o sentido é o mesmo, um ser em que descarregaremos nossas culpas. E culpas devemos ter muitas, porque o castigo é certo, é uma questão de tempo. E tempo é exatamente o que não temos, daí toda essa aflição para despachar rapidamente as culpas para bem longe de nós.
Agora mais sacrifício: comprar presentes, lembrar de todas as pessoas, encarar as lojas cheias do shopping, os estacionamentos lotados. Ora, se temos que trocar presentes, que cada qual dê um presente para si mesmo, é a minha teoria comodista, e está tudo resolvido. Mas, é a tradição, e é necessária muita criatividade para desencavar presentes originais para cada um.
Os ambientes cheios de gente me deixam atordoado. Uma vez tive um ataque de pânico na exposição do Monet, no Museu de Belas Artes, toda aquela oferta de estímulos visuais, aquelas filas imensas para se acotovelar diante de telas coloridas. Quase igual a essas vitrines, com a diferença de que aqui tudo tem um preço que podemos, com esforço, pagar. Peço licença e saio da loja. Vou esperar lá fora, procurar um lugar mais vazio onde possa me encostar e olhar uma nesga que seja de céu estrelado.
Daqui posso observar todo o movimento. Quanta gente, que disputa pelos melhores nacos das presas caçáveis. Penso em todos aqueles que não terão presentes, nem ceia de Natal, que se satisfarão com o bico de um pão de ontem e um copo d’água. Então, há natal para todos? Democracia é isso: que todos possam chegar a ter um natal feliz, uma noite feliz, pelo menos uma. Anseios de paz. Prosperidade, que palavra mais vil, sempre referida a um futuro inalcançável!
Bem, vou ficar aqui quietinho no meu canto até acabarem-se os arroubos aquisitórios. Depois, eu sou apenas o motorista da madame, levo pra lá e pra cá, sem reclamações. Um outro infeliz se encosta ao meu balcão no shopping. Temos o mesmo ar de enfado, estamos segurando embrulhos. Olhamos o céu pensativos. Saco, heim, meu amigo! Então, com o olhar cúmplice da solidariedade, puxo conversa.
-Como estão as compras?
-Pois é, me falta uns oitenta reais. Vai faltar presente.
-Muitos filhos?
-Sete, filhos e filhas.
-Sete? Caramba, é muito filho.
-São adotados.
-Adotados?
-E você? Comprou tudo?
-Vou deixar minha mulher comprar. Eu acho Natal um porre!
Um porre! Olho o meu companheiro de viagem. Meia idade, magro, cansado, cheio de pacotes. Sua mulher se aproxima rodeada de crianças, de mãos dadas, com seus olhinhos brilhantes com tantos presentes. Ele se despede com um “Feliz Natal!”. Vejo a família se afastando unida, as crianças criando o cimento de união entre aqueles dois heróis que não tiveram filhos.
E, de repente, percebo o sentido de tudo. Nós temos que ser, cada um de nós, o bode expiatório... Todos nós... Pelas crianças. Elas são a prosperidade do futuro. Por elas, e somente por elas temos que manter a nossa dignidade. Afinal, podemos não estar aqui ano que vem...
Compramos tudo e voltamos para casa em silêncio. O carro roda nas ruas iluminadas da cidade. Sinto a presença da mulher do meu lado. Ela está cochilando, cansada, após um dia fatigante. Dirijo a ela meus pensamentos. Com um desejo de Feliz Natal.