Presente de casamento

Era como se eu sonhasse. “Natália”, a voz dela me chamava e eu, que não dormira quase nada, ansiosa pelo casamento, a igreja, a festa, a lua de mel – tantas coisas para uma só cabeça pensar – despertei um pouco perdida, as mãos estremecidas: “Fátima? Ah, Fatinha então você me acorda assim?”. Minha voz estava ainda entorpecida, meio rouca, “Pega o hobby pra mim, por favor, Fatinha”. Eu sorri ainda pensando no casamento, os lábios tremendo de vez em quando. Ela sabia que quando eu ficava ansiosa meus lábios tremiam, eu nunca pude esconder. “Parece uma debutante”, ela disse entregando-me o hobby, que deslizou de suas mãos sobre mim, me aquecendo como um abraço.

Espreguicei-me, agora estava de fato acordada. Limpei a remela do olho, o muco do meu nariz, as noites andavam frias, um gelo só. “Vê como fica essa droga de nariz, Fatinha? Pega uma aspirina na gaveta do banheiro pra mim, pega”. Ela, que estava sentada, suas pernas roliças e rosadas cruzadas, o rosto vivo como uma romã – aliás, vivíssimo – levantou-se e pegou a aspirina, que nem mesmo cheguei a tomar. “Me diga, Fatinha, você viu quantos presentes? Mamãe ficou doidinha. Parece que a Dona Amélia me deu uma máquina de fazer chantilly importada, o filho dela trouxe lá dos Estados Unidos. Que diabos vou fazer com isso, me diz”. Fátima levantou-se, os braços cruzados, andando de um lado a outro do quarto, perscrutando, analisando, verificando os porta-retratos, mexendo num objeto aqui, arrumando outro ali. “Seu pai vem?”, perguntou-me, abrindo uma velha caixinha de múscia que ela mesma me dera quando eu tinha sabe-se lá Deus quantos anos, nem tocava mais a musiquinha. “Meu pai? Você sabe como ele é, Fatinha”, respondi, levantando da cama, “Ele disse que não entra em igreja católica de jeito nenhum, depois que virou crente tudo que não seja como é lá na igreja dele é coisa do diabo. Você tinha de ver como ficou quando descobriu que o pai do André é espírita, por pouco não amaldiçoou nosso casamento”. Fátima sorriu, o som de sua risada era tranquilo mas me agitava, me deixava alegre. “Então sua mãe é quem vai entrar com você, certamente”. “Sim, sim”, respondi enquanto abria o cortinado para iluminar o quarto, “Até tingiu o cabelo de loiro, não viu? Ah, você tem de ver, ficou engraçada”. Fátima meneava a cabeça afirmativamente, seus olhos esbugalhados por natureza percorriam o quarto, às vezes vinham em minha direção como se me quisessem. “Ah, Fatinha não me olhe assim”, “Assim como?”, ela perguntou debochando, “Parece que vai me engolir”. Gargalhamos juntas. Eu estava eufórica – esta é a palavra. Tão eufórica que saltitava pelo quarto sem saber bem o que fazer, como se minha alma tivesse se desdobrado, como se eu tocasse tudo ao meu redor dominada por uma alegria que me expandia. “É felicidade”, ela disse, me olhando satisfeita com aqueles braços cruzados.

Eu precisava de um banho, depois arrumar a cara, um pó, um batom, sei lá. “Que cara desprezível, heim Fatinha. Até pareço um espantalho. Assim o André não casa comigo”, brinquei diante do espelho. Fátima aproximou-se de mim, senti um frio ao redor. Olhando-a pelo espelho, eu disse: “Você vai me ver na igreja, não vai? Me criou desde menina, não admito suas vergonhas dessa vez, arre! Já basta no dia do balé, fiquei danada com você, Fatinha. Aquele recital era pra você, fiquei danada”. Fátima ergueu uma das mãos, tocou-me o ombro com tanta delicadeza que quase não pude sentir. Através do espelho ela me olhou, agora parecia pálida, a pele não lembrava em nada uma romã. Os lábios estavam roxos, os cabelos espessos, quase sumindo, um cheiro de flor invadiu o quarto. Com a voz fraca, ela disse: “Eu não posso ir ao seu casamento, Natália, eu tô morta, lembra?”. Era como se eu sonhasse. Não havia explicação a não ser esta. Alguns instantes e ela sequer acenou, foi sumindo, me deixando outra vez e aquele cheiro de flor, de vela, de defunto. Eu estava imóvel, completamente perdida. Era eu ali? Tão frágil. Ela estava morta. Eu ia me casar. Mas não foi sonho. Embora a memória às vezes nos engane, seria uma peça cruel fingir que a vi sem tê-la visto. Não, eu a vi sim, era ela, só que morta. Morta mesmo. Meus lábios estremeceram. Não de ansiedade. De medo.

Taylane Cruz
Enviado por Taylane Cruz em 01/09/2011
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