Moinhos de Vento
O dia era desses em que a frouxidão içava seus dormentes tentáculos sobre Jeremias, deixando-o, encastelado em seu faz-de-conta, alheio às horas que passavam e a ranzisse de Aurélio, seu patrão, que, muito a contra-gosto, entre resmungos e réplicas, deixava-o assinar o livro-ponto, após o horário e seus devaneios.
Jeremias havia se casado há dois anos. Sua esposa, Otila, estava grávida e às vésperas do parto. No assento do coletivo, o moço estava inculcado com o custo do enxoval do pequenino, porque ainda não haviam comprado nem uma fralda. Otila teve complicações durante a gestação, e lá se foram todas as sobras do minguado salário. Para piorar, na livraria em que trabalhava, seu Aurélio não dava aumento, nem conselho, mas distribuía imperativo a todos, deixando Jeremias ainda mais afoito na leitura de Cervantes, que consumia boa parte de seu tempo livre.
Os ziguezagues, bíiii, Fromm, vruum, vruum, embalavam Jeremias em acordes maravilhosos, numa sinfonia magistral, regida por seu inconsciente soberano e justiceiro, deixando lá fora o mundo com sua fatiga, e cá dentro, a pompa digna de aristocrata a serviço de um plebeu em ascensão.
Comodamente instalado na primeira classe, Jeremias toma água gaseificada, de olho em um homem enorme, de cor morena e bigodes largos, que se aproxima, pedindo para se sentar junto a ele. A conversa não durou mais que dez piscares de olhos, o suficiente para o homem deixar-lhe, nas mãos ambiciosas, uma jóia rara que pertencera a um antigo rei persa de cuja gênese Jeremias descendia.
O nobre recém-condecorado fez-se de rogado, com um assopro sobre a pedra rubra do anel já em seu dedo “fura bolo”, reabastecera seus desejos, suplantando a ideologia daqueles que agora o serviam. Jeremias proferiu um discurso revestido do poder que vem do povo e com subsídio do direito constituído em seu reino, com perfeição retórica, persuadindo os senhores parlamentares a constituírem aos cidadãos o direito de sonhar. Sob as palmatórias, o irreverente Jeremias assoprou seu anel e deixou Brasília com sua cupidez.
Iniciava-se uma seqüência na reduzida odisséia Jeremias-Quixoteana. Para tanto, os irmãos de Zeus já haviam sido vingados, mas Jeremias esculpia sua própria história e, seguido por suas fantasias, passa em comitiva sob o cadáver de Cronos que, sob seus pés, divinizava-o na presença de Getúlio Vargas, superado pelo triunfo de seus heróis expedicionários. O divino Jeremias, porém, sábia e persuasivamente, sepultou o Estado Novo, oportunamente com seu namoro Europeu. Com o velho estrategista sob controle, Jeremias assoprou seu anel em direção aos seus dias, satisfeito porque os seus herdariam um exemplo que ele ajudara a construir, pois acreditava no velho Estadista.
De volta, no quintal de sua casa, havia uma outra casinha alugada. Nela morava a Marcelina que vivia metendo-se em assuntos em que não era chamada. Avisado de tudo, estava o anel mágico do Jeremias. Tudo o que ele precisava fazer, era atender a todos os desejos ainda na mente do amo. Então Jeremias entrou pelo portão completamente invisível, a Marcelina e o cão Tarzan nem perceberam sua invasão, até forçar a porta, meio emperrada, de sua casa e renascer aos olhos de Otila.
O anel era leal. Otila nem fizera perguntas, eram só beijos e abraços, pouco falava, muito ouvia e só beijava, não poderia haver um sentido mais homogêneo do amor e do querer. Jeremias arrebatara, no plenário e na história, os sonhos de sua gente e, ainda no umbral de sua casa, o desejo da família em possuir a casa própria. Otila envergava-se de amor e orgulho do marido que juntos, os três, saíram abraçados e invisíveis pelo quintal, ganhando a rua, rumo a nova casa, de mãos tesas ao ventre e corações à semente.
Só havia um inconveniente: a parada do coletivo. Mas Jeremias julgou menos importante, metera-se em assunto notável. Se fosse para interromper, voltaria para Cervantes ¾ antes viver do que ser vivido ¾ pensou o rapaz, já de mãos à fechadura da porta que deslizou macia como caneta no papel, sem ranger ofereceu à família sua hospitalidade. O pequeno nasceria em sua casa. Teria seu próprio quarto e brinquedos inteiros. Jeremias e Otila estavam felizes.
O sol reluzia sua cor preferida, o dia o frescor que lhe agradava e os pássaros cantavam para o encantar. Era um rei este Jeremias, só lhe faltava um súdito rebelde para lhe conferir a realeza, o Aurélio. Jeremias provaria ser democrata. Mostraria ao Aurélio o que é governar, depois até poderia voltar a ser vivido.
O anel de Jeremias pareceu atrapalhar-se, teria sofrido uma penalidade se fosse um simples mundano, estacionando seu amo quase sobre um passante tão apressado que nem percebeu a manobra, perdendo-se na multidão, deixando para trás um nobre da melhor estirpe, entrando na livraria de seu Aurélio, com toda pompa, de cajado e estrado, pronto à reverência de seu súdito.
Jeremias, explodia-se aos avessos, seus antigos colegas de serviço ficaram boquiabertos diante de sua majestade, fitando matreiro ao fundo, a figura sorrateira do Aurélio que se aproximava e se avolumava..., avolumava-se, diminuindo Jeremias escudeiro, servil, vendedor encolhido diante do patrão que se espichava, deformando as orelhas, feitas em pás que catavam vento, feito moinhos. Aterrorizado, Jeremias tem em sua frente o Mané Gordo, motorista do coletivo, avisando-o que chegara ao ponto final.