O Funeral

O relógio batia onze e quarenta e cinco da noite quando Valdomiro chamou no portão. A casa não era grande. Na parte da frente, do portão à varanda de entrada alguns metros. Na lateral, um corredor grande onde se vê um jardim, no qual a flor que predomina é a dália. Do outro lado, o outro corredor tem algumas plantas, ainda em latas de tinta, e umas mudas de árvores frutíferas, todas para serem transplantadas. Algo que o tempo ainda dirá. Nos fundos, ficam as árvores maiores e as janelas dos dois quartos que dão para esse pomar. Uma área grande e bonita. O lugar da casa mais bem cuidado por Vitória.

– Seu Alfredo!

A luz acendeu na varanda da frente. Nesta hora foi possível ver a casa com mais cuidado e a tinta das paredes já estava carcomida. O telhado muito sujo e as portas e janelas pareciam mais envelhecidas do que de fato estariam com o passar dos anos. Valdomiro voltava à casa depois de seis anos de ausência. Na ocasião, Vitória fora morar com ele na casa do sítio, a cerca de trezentos quilômetros da cidade. Seis anos que pareciam sessenta. Ali na casa da cidade só tinha ficado um filho de Vitória. Solteiro, ele optou por morar na casa enquanto terminava os estudos. Pretendia ser médico-veterinário.

– Seu Alfredo!

Alfredo tinha dezoito anos quando a mãe foi embora. Segundo os vizinhos contaram, o rapaz e a mãe não se entendiam e tinham lá os seus motivos. Ao que tudo indica, Alfredo era filho adotivo e também era homossexual. Vitória, uma mulher de valores tradicionais e católica fervorosa não apoiava a opção do filho. Fizera um testamento e deixara para ele a casa e uma gorda quantia em dinheiro para bancar os estudos. Alfredo não se mostrou interessado nos livros tão logo percebeu as asas da liberdade.

– Quem chama? Quem está aí?!

– Sou eu, Valdomiro. Sou empregado da dona Vitória, mãe do seu Alfredo.

– Alfredo?! Que Alfredo?!

– É o rapaz que mora nesta casa. Ele é filho dela.

– Aqui não tem nenhum Alfredo.

Bateu a porta e voltou para dentro. Valdomiro se viu numa situação delicada e sem saber o que fazer sentou na calçada. Mão na cabeça, olhar perdido no infinito como se quisesse buscar a solução numa esquina. Sacudia a cabeça negativamente, olhava para o interior do quintal, quis voltar a chamar, mas recuou. Levantou e com o chapéu na mão, Valdomiro seguiu pela rua. Ao passar em frente a uma casa verde lembrou que ali morava uma antiga vizinha e amiga de Vitória. Parou e sem pensar duas vezes bateu palmas.

– Ô de casa!

– Ô de fora, quem é?

– É o empregado da dona Vitória, o Valdomiro.

– Vitória?! Que Vitória?!

– A que morava aqui há alguns anos, na casa no final da rua.

– A casa branca?!

– Isso mesmo.

Neste instante a porta se abriu e a dona da voz cansada e envelhecida mostrou sua face. Era uma senhora de seus setenta anos, pele clara e cabelos desgrenhados. Um ar sisudo, um andar lento se aproximou de Valdomiro rente ao portão.

– Boa noite, desculpe o mau jeito e o adiantado da hora.

– Boa noite, o que o senhor quer?

– É sobre o filho da dona Vitória, o Alfredo. A senhora tem notícia dele?

– Menino esquisito. Se mudou daí seis meses depois que a mãe se mudou da casa e nunca mais deu notícia. O povo fala que ele se juntou com um colega de escola e foram morar em São Paulo.

– Em São Paulo?!

– É, dizem que é.

– Meu Deus! E agora o que eu faço?

– Mas o que houve, por que essa aflição toda?

Agradeceu e ainda mais confuso do que antes simplesmente disse adeus e saiu. Desceu a rua e seguiu para o lado da igreja. Alguém tinha de ajudá-lo e a ele cabia a missão de achar quem o fizesse. A cada passo que dava tinha a sensação de que estava numa outra cidade que não a da sua patroa. Ele, de fato, não era muito de ir lá, mas a patroa morara ali por longos anos até decidir ir para o interior. Valdomiro não entendia como as pessoas estavam mudadas e por que todo mundo parecia distante. É bem verdade que a família Quirino não era muito quista na cidade, pois diziam que sempre foram muito violentos. Ricos e donos de quase todas as terras da região fizeram fama como coronéis e senhores de tudo. Uma fama que agora a vida veio cobrar.

Valdomiro foi morar com os Quirino ainda menino. Tinha aproximadamente quinze anos quando os pais morreram e o coronel José de Ribamar Quirino o trouxe para morar com eles na casa de Anapurus. O Menino vivera o tempo todo no sítio e logo se amofinou com a cidade. Vendo a tristeza do garoto, Vitória, cheia de piedade, o deixou ir morar no sitio com os outros empregados. Lá era menino de muitas artes e sempre vigiado de perto por Etelvina e seu esposo Marcelino. Mas era menino bom e nunca fizera nada que pudesse contrariar os padrinhos.

Olhou fixamente para a fachada da igreja-matriz e correu os olhos até a casa paroquial. Um cão latiu longe e Valdomiro procurou por um ser vivo naquela hora da noite. A praça central de Anapurus estava deserta e na rua paralela à igreja apenas um boteco mantinha uma luz acesa. Lá dentro, dois homens, já bem alterados pela “mardita”, insistiam numa partida de sinuca. O dono do estabelecimento segurava o queixo e com ar sonolento viu entrar o empregado de Vitória.

– Noite, “sior”

– Noite.

– O senhor sabe como eu faço para chamar o padre aqui na igreja?

– Vixe. Aí num tem mais ninguém não. Tem tempo que ele dorme em outra casa.

– Ele não fica na casa paroquial?

– Nada. A casa fica nos fundos da igreja e o cemitério nunca foi a melhor companhia. O padre não gostava de dormir sozinho lá. Mudou-se para a casa da igreja do Alegre.

Alegre era um bairro distante da praça central. O medo do padre, se é que padre tem medo, tem a sua explicação. Na rua de fundo com a igreja, onde funciona a casa paroquial, do outro lado, é o portão do cemitério. A mansão dos mortos tem mais de duzentos anos e sempre tem uma história sobre os moradores de lá. Pelo sim, pelo não, padre Bento optou por não arriscar.

Falando em morto, um dos velórios mais estranhos que Anapurus presenciou foi o do finado Quirino. Homem de muitas posses, mas também de muitas crueldades. Contam os mais antigos que uma vez ele mandou cortar as mãos de um mulatinho só porque o garoto tinha passado a mão no seu cavalo. O capataz viu e quis livrar o menino. Mas Quirino viu também e na hora mandou que o menino fosse castigado. O capataz, por essa iniciativa bondosa, foi demitido e banido da cidade. Dizem, não se pode confirmar, mas isso é só um detalhe que ilustra o velório do tirano. Na hora de sua morte, nem mesmo o filho Alfredo quis levá-lo ao cemitério e os empregados puseram o caixão numa carroça e, pasmem, os burros não quiseram andar. À custa de muita chibata o infeliz foi conduzido à cova. Para determinar ainda mais a maldição sobre o coronel, os animais assim que se viram livres do corpo desembestaram na carreira. Fato que nunca será esquecido na pequena vila que já fora uma taba de índios.

– Bem, nesse caso eu não sei o que fazer.

– O sinhô tá precisando de “arguma” coisa? - Quis saber o vendedor.

– Não, sinhô. Vou me arranjar. Té mais ver.

– “Inté”.

Saiu dali e rumou para lugar nenhum. Olhou o relógio da matriz e já beirava as duas da madrugada. Nenhum vivente, nenhum cristão, nada. Por onde olhava somente as casas fechadas, latidos longes e o sopro do vento. Uma solidão e uma angústia que não podiam ser medidas. Valdomiro mastigava seus pensamentos e tentava arrancar da cabeça uma luz para o problema que tinha de resolver. O diabo era o cansaço, o sono e, ainda por cima, o adiantado da hora. Tinha de resolver uma situação que para ele era nova. Sozinho e sem apoio, caminhava, caminhava e caminhava.

Passando próximo à antiga casa de sua patroa lembrou-se de pegar a motocicleta que o trouxera à cidade. O veículo tinha ficado estacionado embaixo de uma árvore e ele então o pegou e começou o trajeto para o sítio. Pilotava a mil por hora e pensava em chegar antes do dia amanhecer. Tinha de dar cabo à sua missão e precisava seguir sua vida. “Vou correndo o máximo que eu puder.” Pensava enquanto seguia a todo vapor.

O dia já amanhecia e Valdomiro adentrou na casa do sítio. Um lugar bonito e bem arejado. Uma casa de muitos cômodos, uma sala grande e somente os dois moravam ali. A patroa e o empregado dividiram nos últimos anos a companhia, os medos e a solidão. Ela, dona de um patrimônio e viúva sem filhos – não considerava Alfredo como tal e já tinha lhe dado sua parte da herança. Ele, sozinho no mundo, optara por cuidar daquela que sempre lhe amparou. Viveu todos os dias para servir a madrinha.

Entrou na sala de visitas e pôde contemplar a velha senhora estendida sobre uma mesa. Seguiu até o quarto dos segredos, um lugar em que somente a dona Vitória tinha as chaves e lhe deixara a incumbência de só entrar ali se fosse naquela ocasião. Fiel como um cão, pegou as chaves na caixinha de joias e abriu a porta devagar. O quarto tinha um cheiro forte de coisa velha e de mofo. Nenhuma luz, nenhuma limpeza. Somente Vitória entrava no local e, nos últimos seis anos, apenas ela conhecia o que tinha ali.

Valdomiro entrou e no escuro tateou até achar uma janela. Abriu e a luz revelou os segredos daquele lugar. Uma mesa no centro, uma cadeira de balanço e mais outra colada à mesa. Uma pequena estante com alguns livros de receitas e um exemplar da Bíblia. Uma imagem de Nossa Senhora de Fátima e na última prateleira uma grande caixa de madeira, em tom verniz, com as iniciais da patroa. Ao lado e sempre fechada, uma porta que dava acesso ao segundo espaço do quarto. Um lugar que ninguém ousara entrar. Nada mais compunha o mobiliário. Subiu na cadeira e pegou a caixa. Abriu devagar e de dentro retirou uma pasta plástica. Pegou uns papéis e todos continham selos da república.

O empregado não era leigo de tudo. Fora alfabetizado pelos Quirino e mesmo não sendo um homem de hábitos urbanos, sempre aprendeu com a patroa sobre documentos, sobre como agir em órgãos públicos e como fazer na hora do fim. Pegou os documentos e logo reconheceu que se tratava de um testamento. Leu com calma e sabia que sua missão era ainda mais longa. Vitória não deixara bens. Tudo fora sendo vendido nos últimos anos e o dinheiro era aplicado numa conta- poupança e também em doações para a igreja. O sítio para ele e, ainda, todo o dinheiro restante. Dentro de uma bolsa pequena ele achou um bilhete:

“Na porta sempre fechada está o meu espaço derradeiro e bem no centro, e que nunca mais deixei alguém entrar, está o meu último sono. Coloque-me na urna que lá existe. Não quero banho, nem roupas novas, nem lágrimas. Coloque uma vela em cada canto. Reze uma Ave Maria e um Pai Nosso e coloque-me no repouso eterno. Com gratidão eterna, Vitória.”

Sem derramar uma lágrima sequer, fez como determinado. Acendeu as velas e foi à cozinha. Preparou um café e ficou sozinho com ela no tal quarto. As velas queimavam lentamente e depois da reza pretendida tratou de levar os restos até o local do enterro. A cova já estava pronta no mausoléu da família, nos fundos do sítio, perto do rio. Era um lugar cercado e lá descansavam todos os parentes anteriores ao casal Quirino. Ela seria a derradeira a habitar o pequeno mundo das sombras.

FIM

VALBER DINIZ
Enviado por VALBER DINIZ em 31/08/2011
Reeditado em 22/09/2011
Código do texto: T3192603
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