UMA GATA E TANTO
A primeira coisa que faz o trabalhador pobretão quando consegue juntar um dinheirinho a mais é comprar um fusquinha. Não importa que seja uma carcaça de mil reais, o que ele quer é mostrar à sociedade que também possui automóvel e nunca mais precisará enfrentar ônibus lotado. Não sei por que estou falando desse jeito se isto ocorreu exatamente comigo. Mal tinha dinheiro para manter a caranga abastecida acima de um quarto de tanque e vivia enguiçando por falta de gasolina. Passando mesmo por vexames hilariantes no meio do trânsito. Mas estava feliz porque tinha o meu carrinho. Doido pra explorar a cidade, lá me ia todo prosa, crente que abafava.
Havíamos ganhado linda angorá de uma amiga e, como não tínhamos animais, aceitamos e, felizes, dirigimo-nos para casa, eu e Mara, minha sorridente esposa que era só agrados para com a gata. Em seu colo, no banco da frente, ela curtia os carinhos e os pelos brancos como neve se arrepiavam de alegria. Pouco tempo depois a satisfação de Mara virou estresse e agonia. A gatinha entrara no cio e passamos a ser hóspedes de machos barulhentos e indesejáveis. Viviam nos infernizando e à vizinhança que nos intimou a desfazer do animal. Um belo dia chego e encontro Mara histérica de tanto ódio.
– Você precisa desaparecer daqui com este bicho imediatamente. Faltou pouco pra eu sair no tapa com aquela jararaca aí do lado.
– O que aconteceu? – perguntei, contrariado.
– Acabou de sair daqui. Veio só para me xingar e nos ofender. Diz que seu quintal vive sujo e fedorento depois que os gatos passaram a andar por lá todas as noites. Mete a angorá no carro e largue-a bem longe, por favor.
Foi o que fiz, naquela mesma tarde. Guiei até a outra extremidade do bairro e deixei a pobre coitada em uma praça. Ela mesma saltou do carro e se aconchegou sobre o banco de um jardim. Fechei rapidamente a porta e parti, não sem uma pontinha de tristeza no coração. Menos de cinco minutos me separavam de casa.
– Pronto, pode ficar tranqüila, os gatos não incomodarão mais – disse ao chegar.
– Tem certeza? – discordou Mara, sinalizando-me a sala. Entrei e, qual não foi a minha surpresa. Ali estava a angorá, indiferente e descontraída, como se nada tivesse acontecido.
Na manhã do dia seguinte, por ser domingo, dediquei um pouco mais te tempo a nossa amiguinha, levando-a para bem mais longe. Dirigi por mais de quarenta minutos e quase saí da cidade. A bichana dormia tranqüila e feliz. Peguei-a no colo ao descer e atravessei a ponte de um rio. Larguei-a num matagal e voltei para casa; não sem antes parar em um boteco e beber um pouco com alguns amigos. A fome apertou, eu me despedi e entrei no carro. Mal sentei ao volante, tomei um grande susto. Sobre meu colo, pulou, vindo do banco traseiro, um gato, melhor dizendo, uma gata.
Pasmo, retornei à casa. Sequer tentei explicar a Mara o ocorrido, acho que não acreditaria. O fim de semana seguinte foi inacreditável. No sábado, logo após o almoço, peguei o animal e o enfiei na mala do automóvel. Visitei parentes, passei pela praia e só retornei depois de rodar a cidade inteira e abandonar a gata na mais escura das ruas entre oito e nove da noite. Cheguei exaurido, mas acho que valeu a pena. Não valeu. Adivinha o que encontrei ao abrir a porta da sala na manhã seguinte? Adivinhou: a própria.
Não quis saber de outra coisa naquele domingo. Aos diabos a televisão, a cerveja e os amigos. Livrar-me daquele estorvo era tudo que me importava a esta altura; uma questão de conveniência. Sendo assim, enchi pela primeira vez o taque do carro. Guiei, guiei e guiei... Quando olhei para o marcador e calculei a distância, parei satisfeito. Abri a mala e tirei o cesto. Removi a tampa. A bicha estava lá, mansinha como sempre. Deixei-a. Voltei ao volante. Após reabastecer e andar alguns quilômetros, dei uma parada e fui até um orelhão.
– Amor – disse, quando Mara atendeu –, me faz um favor. Pede a essa gata pra vir aqui me buscar porque não estou sabendo voltar pra casa.