Numa pensão ao lado
Mudar é sempre muito cansativo. Carregar móveis, objetos, ter de decorar tudo outra vez, adaptar-se. Havia pouco mais de cinco horas que eu estava na casa nova e uma agonia me consumia, “se eu pudesse voltar pra casa antiga, onde tudo estava já no seu devido lugar”. A vizinhança até parecia agradável, havia crianças brincando nas calçadas, comadres conversando, o carteiro tomando água fresca no bar da esquina, cansado do dia inteiro debaixo de sol. Ao lado da minha nova casa – nova casa, repetia tentando aceitar a ideia – havia uma pensão. Um homem, cujo nome nunca pude lembrar, informou-me assim que desci do caminhão-baú, carregada de caixas, que na pensão ao lado eu poderia fazer as refeições, ficaria muito cansada da mudança para cozinhar e lá era tudo muito em conta, a comida, ele garantia, era de primeira. Assenti e agradeci a simpatia, dando continuidade à mudança sem dar-lhe mais importância.
Passei a tarde arrumando tudo, subindo e descendo escada, pondo um quadro ali, uma cortina aqui. Era quase noite, quando, esgotada, estendi-me no sofá, único móvel da sala que eu havia posto no lugar certo. O cara da TV a cabo só viria na segunda, não tinha o que asssitir, então fiquei ali meio anestesiada, vagueando o olhar pela nova casa, tão estranha, tão indiferente a mim e eu à ela. Enquanto eu repousava preguiçosa, a campainha tocou. Abri meio assustada, afinal não conhecia nem esperava ninguém. Uma mulher alta, quase velha, estava de pé com um sorriso aberto e me convidando para jantar “com todo mundo lá na pensão”. A princípio eu quis recusar, até recuei um pouco:
— Estou tão cansada que nem sinto fome.
Mas a mulher insistiu, me elogiou, cruzou as mãos sobre o peito e me garantiu que eu iria amar a comida dela. Ela era a dona da pensão. Receosa, aceitei. Fomos até a pensão, a mulher na frente, eu a seguindo desconfiada. Quando entramos, havia uma imensa mesa logo na sala de entrada. Pessoas comendo e bebendo, falando alto, rindo. A mulher me apresentou, nem sabia meu nome. “Ana”, eu disse, cumprimentando com cautela a todos. A mulher me pediu que sentasse, ofereceu-me um lugar ao lado duma mocinha braquela, franzina, a cara chupada. Exitei, sem que alguém percebesse, antes de sentar, mas logo me acomodei, embora estivesse desconfortável, minhas mãos sem saber o que tocar, estava em terra estrangeira. Fui servida com fartura, a dona da pensão fizera questão de ela mesma por a comida no meu prato. Trouxe uma cerveja gelada e fez um brinde em minha homenagem. Durante toda a refeição, não houve silêncio. Um homem gordo, que bebeu sete copos de cerveja – não pude deixar de contar – até cantava à mesa e ninguém se incomodava. A dona da pensão gargalhava, parecia uma mulher muito feliz com todos aqueles hóspedes. Eu me sentia enfim à vontade, curiosa por conhecer aquelas pessoas, quem sabe daqui a um tempo eu seria íntima deles, saberia de suas histórias, participaria de suas vidas e elas da minha. Eu seria também uma hóspede. Ah! Aquela esperança de unir-me a todos eles me agradou bastante, relaxei, pus mais cerveja no meu copo e acompanhei a canção que o homem gordo cantava, estava satisfeita com a nova vida, encontrara um lar? Sentia que sim.
Enquanto eu me regozijava e ficava feliz, uma mulher, de repente, entrou na sala gritando, quebrou uma garrafa e apontou para o rapaz magro sentado à minha frente ameaçando matá-lo. Ele levantou-se e a pegou pelo braço, depois saíram e todos continuaram a comer e a cantar e a beber cerveja como se o imprevisto nunca tivesse acontecido. Fiquei assustada, curiosa e, tocando no ombro da mocinha franzina, a branquelinha sentada ao meu lado, perguntei: Que foi isso? Ela me olhou perdida, pareceu não entender pondo sobre mim aqueles olhinhos inéptos, então repeti a pergunta, sorrindo e bebendo cerveja, mas sua expressão era ainda mais inépta e eu repetia e repetia sem entender por que ela me ignorava. A dona da pensão, percebendo nosso conflito, alertou-me, irritada: Não vê que ela é surda, heim? A mulher deu um soco na mesa e tudo silenciou, todos ficaram quietos, me olhando. O homem gordo fuzilou-me com o olhar, como se eu me tornasse, de repente, uma assassina. O homem magro grunhiu e pareceu morder-me os pulsos tal era a violência com a qual cerrou os dentes. Fiquei completamente desconcertada, apavorada. Voltei-me para a mocinha e me desculpei, o que só piorou a situação. A dona da pensão levantou-se furiosa: Está debochando dela, cretina? A mocinha parecia assustada, balbuciou sons vibrantes que eram como interrupções, acuou-se e correu a abraçar a dona da pensão que, a essa altura, espumava. Eu, tudo que pude fazer, foi sair correndo dali desamparada. Entrei na minha nova casa e comecei, desesperadamente, a empacotar tudo outra vez. Definitivamente, ali jamais seria o meu lugar.
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