Verdades (?) sobre a "Musa do passado"

Verdades (?) sobre a “Musa do passado”

O texto que publiquei no Recanto das Letras, intitulado “Musa do passado” foi escrito na primeira pessoa sem declarar que não era eu o herói da história por esse herói não desejar ser reconhecido mas não se opor à publicação. Teve, no site, raríssimos leitores e ainda menos fora dele mas foram duas leitoras deste último grupo que me “obrigaram” a voltar ao tema. Uma das leitoras, minha amiga, considerou que a historieta puxava à lágrima, o que não era de todo a minha opinião nem o meu propósito e uma outra, ao que tudo leva a crer a própria Musa referida no texto, enviou-me uma carta que a seguir transcrevo não só por razões deontológicas mas também porque espero que faça secar as lágrimas da outra, da minha amiga.

Talvez já nem os parcos leitores da “Musa do Passado” se recordem de que aí se contava boa parte do que teria acontecido com um jovem estudante liceal primeiro e universitário depois, inicialmente admirador duma balzaquiana casada e tida como incluída num “ménage à trois”, posteriormente seu cliente quando ela se estabeleceu como prostituta. A história termina quando o rapaz vê saciada a sua curiosidade sobre o modo como a senhora passou de uma situação à outra e deixa, por isso, de querer saber dela.

O teor da carta que referi desnatura a história anterior e é por isso que a transcrevo:

“ Sr. Daquino Porto Sem data certa

Teias dum acaso que seria irrelevante descrever fizeram com que lesse o que você quis fazer passar por um conto da sua autoria ou relato da sua experiência, com o título de a “Musa do passado”. Mal o li verifiquei que a figura feminina ali descrita só podia ser eu: naturalidade, residência e sobretudo as tretas que contei ao rapazinho que durante algum tempo foi meu cliente sobre o que teria sido a minha vida não podiam dizer respeito a outra pessoa. Se a história tinha algum interesse ele consistia exclusivamente no que na altura inventei pelo que o mérito daquele conto é exclusivamente meu.

Deu-me algum trabalho, mas não muito, averiguar que quem subscrevia o texto não era o rapazinho de então mas quer um quer outro já não poderiam ter idade para acreditar no que contei àquele meu simpático mas muito ingénuo cliente. Transcrever sem qualquer reserva aquele conjunto de patacoadas, longe de aumentar a qualidade do conto, torna-o simplesmente inverosímil e mostra incompetência do escritor.

De verdade sobre as minhas origens há apenas o facto de ser natural de uma aldeia perto de Guimarães e de muito ter lido na minha adolescência e juventude (o que prosseguiu); a profissão da minha mãe como modista da terra foi-me sugerida por ela”costurar para fora” como se dizia na altura das mulheres que viviam ou sobreviviam do que lhe davam os homens que com elas dormiam acidentalmente ou às vezes com alguma permanência. Depressa me diferenciei da minha mãe porque em vez de receber eu «cobrava» os serviços prestados numa atitude muito mais empresarial e menos amadora que a minha mãe. Aliás o sexo nunca me proporcionou qualquer prazer que não fosse o de receber boa remuneração dessa actividade. Como também nunca experimentei especial repugnância por qualquer das suas modalidades agora consideradas normais sempre me movimentei nessa área com grande liberdade e objectividade. O Elói referido como meu marido nunca gostou de sexo com mulheres e descobriu-me quando engatou um proprietário rico da minha aldeia. Quando me conheceu propôs-me sem rodeios ir para o Porto, associar-me com ele simulando um casal, aumentando duma penada só a gama de serviços, a clientela e os rendimentos da nova empresa. Nunca recebíamos clientes em casa e mesmo o Navarro, que foi um engate duradouro do Elói, nunca entrou, esperava-nos à porta. Mas quando ele morreu passei a receber em casa para poupar despesas e deslocamentos.

Devo dizer-lhe ainda que o rapazinho, meu cliente, que lhe terá contado a história que transcreve, não deixou de me visitar por se lhe ter esgotado a curiosidade ou o apetite. Eu é que recusei as insistências dele em me visitar, a partir de certa altura, porque ele me tomava muito tempo e começava a ser chato de tão curioso.

Pouco tempo depois disso vim para o Brasil mas não lhe vou contar essa parte da minha vida. Do que fica dito faça o uso que quiser. Nem méritos nem demérito já me interessarão porque se me ler é porque estarei morta e enterrada.

Com os desejos de melhoras para a sua escrita e sobretudo para a sua imaginação e capacidade de análise vão os cumprimentos póstumos da, para si,

Fernanda”

A leitura da carta não me causou orgulho mas a publicação proporcionou-me a satisfação de um dever cumprido. Que a alma da Musa descanse em paz.