Depois que ele se levantou e saiu, encolhi-me. Um feto! Era o que queria ser: um embrião, flutuando em líquido morno, embalado pelas batidas ritmadas do coração de minha mãe. Seria um mísero amontoado de células, ávidas em tornar-se eu. E eu impediria. Aborto! Era isso o que eu queria ser, naquele momento, e em todos os outros iguais àquele: um embrião abortado.
A realidade, porém, era outra e meu corpo todo doía, em cada arranhão, em cada ponto pressionado por ele em fúria de gozo, em todos os músculos que retesei, sufocados em adrenalina, como se isso pudesse tirar-me dali. Se pudesse, fugiria tão depressa que ele nunca mais me veria. Se pudesse, o mataria. Ou morreria para nunca mais ter que... Ah! Se eu pudesse... Se eu pudesse, queria ser um embrião. Abortado.
Inútil pedir ajuda à minha mãe, pobre mãe. Um molambo! Qual espírito suportaria tanto sofrimento sem alquebrar-se, acorrentada àquele monstro por medo, o coração, embriagado e triste, tornado inválido para ninar quem quer que seja?
Agora urgia lavar-me, deixar a água do chuveiro escorrer por mim e retirar o cheiro pútrido deixado por ele, a mistura nauseante de álcool, suor e cigarro. Esperei um pouco, evitando encontrá-lo pela casa, sob risco de ainda levar uma surra. Só quando pude ouvi-lo roncando, levantei-me e corri para o banheiro. Tranquei a porta, a velha cadeira escorando a maçaneta. Liguei o chuveiro. Frio: temia que o som da resistência o acordasse. Foi quando as lágrimas vieram, aos borbotões. Depois de muito tempo ali, percebi que, por mais que demorasse, permaneceriam em mim essas sensações, lembranças, dores. Sentia-me sujo e sujo continuaria, mesmo que passasse o resto dos meus dias tiritando ali, naquele banho gelado.
Vesti-me e saí. Sem rumo. Apenas a vontade de afastar-me daquele lugar, ir para longe, o mais longe que minhas pernas franzinas de menino de quatorze anos pudessem me levar. Uma garoa fina banhava a cidade adormecida, indiferente. Somente meus passos agrediam o silêncio.
Na Esplanada, extasiei-me ao ver as luzes do natal e dos postes refletindo-se no asfalto molhado, deixando tudo muito claro e colorido. Às minhas costas, estava o Lago com suas águas negras e calmas. Morrer assim deve ser bom, em meio a tanta paz e luz. Morrer assim ou de qualquer outro jeito seria muito melhor do que continuar vivendo essa vida.
Decidi. Virei-me. Voltaria à orla, saltaria da ponte, num último mergulho.
Pensei em minha mãe. Pobre mãe. Será que ela sofreria se eu morresse? Penso que em seus devaneios etílicos, eu já tenha partido há anos, montado na bicicletinha que ela conseguiu comprar para mim, depois de meses economizando. Bonito o sorriso dela ao me entregar o brinquedo, o brilho ansioso de seu olhar pela minha reação, a satisfação em ver minha alegria. Isso foi bem antes da chegada dele, eu devia ter uns sete anos. Depois, perderam-se no tempo seu sorriso e o brilho no olhar. Pobre mãe! Duvido que chorasse minha morte, já tão morta ela se encontra.
Então, se mudei de idéia, foi por mim mesmo, por meu próprio instinto de sobrevivência, bruscamente despertado pelo carro que quase me atropelou quando eu ia atravessando as pistas, absorto em minhas angústias. Joguei-me para o lado e ele passou a centímetros de mim, levantando água em duas ascendentes cachoeiras, avermelhadas pelas lanternas traseiras. Caído no asfalto, encharcado e sujo, fiquei hipnotizado, observando aquele brilho. Jorros de sangue, eram o que me pareciam e, em sangue, comecei a pensar. Se eu morresse, minha mãe continuaria ali, suportando suas agressões. Mas, se eu o matasse, ela também ficaria livre. Mesmo que eu fosse preso, valeria a pena. E, enquanto me levantava e retomava minha trajetória de volta ao centro da cidade, ia maquinando o seu assassinato. Imaginei-me de tocaia, esperando o momento certo, uma bebedeira maior, que o derrubasse ainda na rua. Achariam que foi briga de bar, talvez eu até escapasse à justiça. À medida que eu andava, meus planos ganhavam detalhes dignos de cinema. Descartei logo a idéia de fazer minha mãe de cúmplice. Pobre mãe. Tanto medo estampado em seu semblante quando ouvia a porta de casa bater à chegada dele. Logo, eu também passei a tremer àquele som. Assaltaram-me as lembranças dolorosas das muitas surras que levamos, pelos motivos mais banais. Até que minha mãe começou a beber também. Passava todo o tempo deitada pelos cantos, às vezes chorava baixinho. E ele cansou-se dela, como saco de pancada e como mulher. Foi quando começou a me procurar.
– Tá perdido, garoto? – a voz forte arrancou-me dessas reminiscências e levantei a cabeça para procurar de onde vinha.
Eram mendigos que se abrigavam sob uma lona, praticamente em frente ao Congresso. Tive medo. Pensei em fugir. Mas, o que poderia me acontecer que ainda pudesse ser pior do que tudo o que já me aconteceu? Aproximei-me.
– Um pouco. – respondi, observando o grupo.
Eram dois homens, uma mulher e três crianças, que dormiam enroladas em cobertores.
– Tá com fome? Sobrou muita coisa da ceia.
– Ceia? – perguntei, surpreso.
– Sim! Viemos pra “festa” de natal. A gente monta a barraca e fica aqui esperando. As pessoas param, dão brinquedos, comida, roupas...
– Ah!
– Quer? – disse a mulher, mostrando uma vasilha de papel laminado, ainda bem cheia de arroz, farofa e frango.
Naquele momento, o melhor alimento para mim foi mesmo a oferta generosa vinda de desconhecidos. Recusei a comida, agradecendo.
– Ih! Não tem de quê! – disse ela. – Ganhamos muita coisa. Nem vai dar pra levar tudo. Amanhã já vamos embora.
Conversamos um pouco mais. Quando os deixei, já nem pensava mais em morte. Eram pobres, mais ainda do que eu. Viviam de esmola, mas me ofereceram acolhida numa noite chuvosa. Eu, um estranho, molhado e sujo, fui recebido com singela aceitação. Por um momento, me passou pela cabeça que poderia ter lhes contado minha história, ter pedido ajuda. Porém, à esta idéia, senti uma pontada forte no estômago e, nauseado, vomitei.
Chegando à rodoviária, sentia-me fraco e meio tonto. Sentei-me num banco. Duas mulheres, perto, conversavam.
– Não mente pra mim, Gorete!
– Não estou mentindo, Conceição! Eu caí mesmo.
– Caiu? De novo? Toda semana!
– Ando azarada.
– Seu azar foi se juntar com aquele demônio, menina!
Gorete não respondeu.
– Ahá! Eu sabia! Ele anda te batendo, não é?
A outra permaneceu em silêncio.
– Não pode! Larga essa criatura, mulher!
– E vou pra onde, Conceição? Eu tenho meus filhos, sabia?
– Você tem que procurar ajuda, Gorete! Vai à polícia.
Levantei-me dali, o estômago querendo embrulhar de novo. Lembrei de quando nossa vizinha teve a mesma conversa com a minha mãe. Pobre mãe. Ela aceitou o conselho. E, quando ele chegou da delegacia, depois de ser interrogado ordenou:
– Vai lá retirar a queixa!
Ela tentou responder. Entre um safanão e outro, ele avisou:
– Posso até ir preso, mas antes, mato você e o moleque!
Ela foi, retirou a queixa. Na volta para casa, parou no bar.
O dia já ia clareando e eu comecei a sentir frio e fome. Sentei-me novamente, encolhi-me, puxando as pernas para cima do banco. Vi um policial se aproximando e tive medo. Eu estava imundo, descabelado e, sem documentos, ia acabar sendo confundido com algum marginal. Cheguei a pensar em fugir, mas desisti. Seria pior. Respirei aliviado quando ele passou direto e resolvi ir ao banheiro, tentar melhorar a aparência. Logo que parei em frente ao espelho, um homem entrou. Pediu dinheiro, eu disse que não tinha. Ele aumentou a voz, começou a me ameaçar, encurralou-me a um canto. Eu estava cansado de apanhar, de ser usado, humilhado. Estava cansado de ostentar aquele olhar de gazela perscrutando o ar a cada estalido na floresta. Juntei todas as minhas forças e o empurrei. Ele não esperava minha reação, desequilibrou-se e caiu. Aproveitei para sair dali, correndo, enquanto ele gritava palavrões. Antes que eu conseguisse escapar, porém, fui agarrado pelo braço. Era o policial. Outro entrou no banheiro, de onde trouxe o homem, algemado.
– Você está bem, garoto?
Assenti, com a cabeça.
– O que houve? Ele tocou em você?
Não respondi.
O homem gritou de lá:
– Esse moleque tentou me roubar!
– Cala a boca, Serjão! Você já é manjado por aqui. Leva ele, Silva Júnior.
Silva Júnior arrastou o meliante dali.
– Cadê sua mãe, garoto? – o outro policial perguntou.
– Em casa.
– Você fugiu?
– Não. Tava na casa da minha namorada. – respondi, rápido demais.
Ele arqueou as sobrancelhas, depois, fez uma pequena careta. Sabia que era mentira.
– Por que não volta pra casa?
– Daqui a pouco. Tô esperando o ônibus.
Ele olhou minhas roupas. A umidade transparecia a ausência de carteira.
– Quer um trocado, pra passagem?
– Não, moço! Brigado! É perto. Vou a pé.
– É perigoso um garoto como você andando sozinho por aqui.
– Sei me defender.
– Quer uma carona?
– Meu pai vem me buscar.
– Não mente, garoto! Acho que vou te levar pra delegacia.
– Não, moço, por favor. Eu não estou fazendo nada de errado! Só quero ficar um pouco por aqui!
Ele ia perguntar alguma coisa. Hesitou. Pareceu mudar de idéia:
– Tá com fome?
Tentei recusar, mas o estômago roncava. Ele me pagou um pastel com caldo de cana.
– É um empréstimo. Toma o meu cartão. Quando puder, vá lá pagar.
– Por que você está sendo legal comigo?
– Você parece com meu filho. Tirando este olhar assustado.
O olhar! Ele percebeu o olhar!
– Tenho que ir. Mas me procure se precisar. – ele disse. Depois apertou minha mão e saiu.
Fiquei perambulando por ali, sem idéia do que fazer, quando vi uma senhora atrapalhada, tentando carregar várias malas.
– Quer ajuda, dona? – perguntei.
Ela aceitou e depois, me deu um trocado. O suficiente para pagar minha dívida. Olhei o cartão: Delegacia da Criança e do Adolescente. Seguindo orientações, tomei a direção da Asa Norte até que a encontrei. Entrei, mostrei o cartão, o escrivão mandou aguardar. Fiquei olhando os cartazes nas paredes, todos mostrando vítimas de maus tratos e abusos. Reconheci-me em cada um daqueles rostos, em cada olhar perdido. Tive vontade de fugir dali. Tirei o dinheiro do bolso e ia entregá-lo ao escrivão, quando me deparei com o policial parado às minhas costas.
– Tristes, essas imagens. – comentou.
Fiquei calado.
– Veio ajudar com as investigações? – perguntou, sorrindo.
– Vim devolver isto. – disse, entregando o dinheiro.
– Já? Sente-se aqui. Vamos conversar um pouco. – falou, apontando um banco.
Irritou-me o jeito dele. Parecia saber tudo o que eu nunca contaria a ninguém. Ao mesmo tempo, sentia-me compelido a obedecer. Sentei. Ele se sentou ao meu lado.
– E então? O que fazia sozinho lá? Você não é da rua. Dá para saber.
Olhei para ele. Jamais contaria!
– De quem está fugindo? – insistiu.
– Do marido da minha mãe! Ele... – comecei, sem entender porque, enquanto as lágrimas corriam pelo meu rosto. Comecei e não parei mais, até ter contado tudo.
Vinte anos se passaram. Meu padrasto morreu na prisão, pouco depois. Minha mãe ainda bebe. Pobre mãe! Ainda se sobressalta quando a porta de casa bate forte. Eu também. Ainda faço terapia, ainda sou acordado por passos trôpegos nos corredores do meu imaginário. Mas, naquela noite que mudou a minha vida, descobri quem eu era: suicida, assassino, forte, valente, sincero, fraco, mentiroso e covarde. E, uma certeza que levei tempo para descobrir: não foi para devolver o dinheiro que procurei aquela delegacia.
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Texto escrito para o 7° Desafio Literário da Câmara dos Deputados.
Categoria Contos - Etapa 6.
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Lembro que fui vencedora nessa categoria e este texto foi um dos principais responsáveis por isso.