Dois e vinte

Andava na calçada, a camisa puída, sapatos foscos como ele mesmo era. Trazia uma pasta debaixo do braço, uma história, uma vida. Ao meu lado, uma mulher de decote exagerado comia salgadinho de milho e bebia coca-cola sem duvidar, seus dentes faziam um barulho violento de devoração – pus a mão no peito com um medo idiota que ela devorasse algo em mim. Enquanto isso eu observava o homem atravessar a rua, vindo distraído, sem qualquer arrogância, com aquele ar de ingenuidade ainda não amadurecida. Ele desviou do guarda que trazia a tiracolo uma arminha inofensiva – não fosse objeto de matar – e, tirando do bolso um bilhete, arreganhou os dentes. Parou diante do portão, o terminal lotado, os ônibus enlouquecidos com a loucura dos homens. O guarda desconfiou sem precisar mesmo de qualquer motivo, deu uns passos e, aproximando-se do homem fosco, interpelou-o. O homem, que era imberbe e por isso tinha a cara exposta, pareceu acuado, o sorriso de quando tirara o bilhete do bolso havia sumido. O guarda o dispensou, sem sequer tocá-lo – acredito que por medo, afinal tocar o desconhecido é despertar a intimidade da qual tanto fugimos, talvez tocar o próprio medo, enfim. O homem relutou, quis entrar no terminal mesmo contra a vontade do guarda. Então começou a confusão, as pessoas voltaram-se para olhar, espiar, caçoar, julgar, acusar, expulsar. Outros homens uniram-se ao guarda, foram para cima do homem fosco. Surraram-no como não fariam a um vira-lata. Mulheres gritavam satisfeitas e crianças pateavam como se estivessem num circo, cuja lona cobre nossas cabeças e encobre algo obscuro.

O homem foi retirado do terminal sem nem mesmo ter entrado. O guarda, com a prepotência que não lhe é genuína – embora ele insista – gritou, enquanto o homem era levado por outros até o outro lado da rua: A passagem é 2,20, ora! Então eu compreendi. 2,20 é o preço do medo, da prepotência, da anulação, da humilhação, da violência, da ingenuidade, da intimidade – da intimidade? Aquele bilhete que o homem tirara do bolso, a pasta que ele trazia debaixo do braço... ele iria a algum lugar, certamente, mas não o deixaram. Sua camisa estava velha demais, seus sapatos gastos, ele parecia cansado, eu lembro. Por não ter o tostão da passagem, não apenas não chegaria ao seu destino como fora renegado a ele um destino maior e comum: ser. A mulher ao meu lado pareceu satisfeita: Tem muita gente malandra nesse mundo, ela disse olhando-me. Eu, tudo que quis, foi abraçá-la. Fui para cima dela com um amor quase indomável, até lhe dei um beijo no pescoço. Ela não entendeu e desceu do ônibus me chamando de louca.

Taylane Cruz
Enviado por Taylane Cruz em 22/08/2011
Código do texto: T3176192