SOLUÇÃO
Tornar-se morador de rua foi decisão tomada após muitos anos de trabalho e de ver todos os seus sonhos se frustrarem.
Quanto mais trabalhava, quanto mais tentava aumentar seus ganhos com horas extras, mais os impostos comiam parte de tudo que conseguia amealhar e pelo salário defasado por causa da inflação.
Impostos, impostos, impostos embutidos ou não em todos os bens de consumo direto ou bens duráveis. As faturas de água, luz, telefone se acumulando num crescendo inexplicável, mais colégio das crianças, aluguel, condomínio com as eternas taxas extras e a sequência interminável de obrigações começadas pela letra “I” – IPTU, IPVA, IR, INSS, IPI...
Semanalmente, a fita da máquina registradora do supermercado crescia inversamente proporcional ao saldo de sua conta bancária.
Numa manhã de sábado, vestido com a calça jeans, camiseta e boné do time do coração, colocou uma cédula de dez no bolso e saiu de casa, calçando a sandália de dedo.
Nenhum documento, nenhum roteiro. Só a idéia fixa... Fugir.
Fugir de tudo aquilo que o aprisionava, de tudo aquilo que fazia de sua vida algo muito pior do que o Inferno de Dante.
Caminhou sem rumo por horas seguidas até chegar à rodovia pejada de caminhões que seguiam para algum lugar...
Aproximou-se de um caminhoneiro envolvido com a troca do pneu furado pelo enorme buraco na pista.
Ajudou a trocar e a apertar os trucentos parafusos e como pagamento, ganhou uma carona, não se importando para onde.
Nas paradas, quando o caminhoneiro fazia refeição, enganou a fome com amendoins.
No destino da carga despediu-se do caminhoneiro e saiu andando.
De repente estava no meio da cidade.
A fome maltratava o estômago e a cabeça.
Na lixeira de um restaurante, fez a refeição que o organismo reclamava, com os restos que estavam sendo disputados por gatos vira-latas.
Ele agora era um vira-lata também.
O alimento induziu ao sono.
Dormiu num banco da praça.
No meio do frio da noite, achou abrigo num papelão sujo e úmido.
A partir daquele momento, seu abrigo e cobertor.
A luz do sol mostrou novo dia.
Seus passos, vacilantes, o levaram para os fundos de outro restaurante de onde foi tangido como cão sarnento que ninguém quer por perto.
Apanhou uma ponta de cigarro ainda acesa, atirada por um fumante distraído e, ele fumou pela primeira vez na vida.
O sabor nauseabundo do fumo e os efeitos tóxicos das drogas contidas naquela fumaça fizeram o mundo dançar em sua frente, mas passado um instante, a sensação de bem estar dominou sua mente.
A noite chegou e com ela umas pessoas distribuindo sopa, pão e cobertores.
Timidamente entrou na fila e ganhou, num prato de plástico, a sopa quente que lhe acalentou como o leite materno.
Devolveu o prato, agradeceu e saiu andando sem rumo até ficar sob uma marquise.
Sentou nos degraus enrolado no cobertor. Ouviu uma voz rouca dizer:
- Saia já daí. Esse lugar é meu
Levantou-se e saiu. A vida do cachorro que ninguém quer por perto já estava se tornando agradavelmente corriqueira.
Há quantos dias mesmo havia saído de casa?
A quem poderia interessar essa resposta?
O corpo estava sujo por dentro e por fora. Sentiu falta de banho e da escova de dente, mas isso já não fazia parte dessa nova vida.
E os parentes? O que estariam pensando?
- Quer comprar? É dois real.
Era uma adolescente com a pedra de crac na mão.
Dos dez, restavam apenas dois, pois os oito haviam se transformado em amendoins.
- É dois, quer?
- Tem como acender?
- Te vira.
Comprou a pedra.
No canto escuro da praça, várias pessoas fumando.
Pediu um cachimbo emprestado. Acendeu...
A fumaça densa embotou todos os sentidos e o mundo ficou brilhando.
Vendeu a aliança de ouro e comprou várias pedras para fumar, fumar, fumar...
Agora não precisava mais de sopa, nem de papelão, trocou o cobertor por mais pedras...
Quando as pedras acabassem iria roubar qualquer coisa.
Assaltar o primeiro que aparecesse em sua frente.
Já não podia ficar sem as pedras.
As suas pedras preciosas...