A EMPREENDEDORA DA CALÇADA

Dia desses, numa manhã ensolarada, eu caminhava pelas ruas do meu bairro por entre o milagre de ainda conseguir desfrutar de algum esconderijo verde que escapou da especulação imobiliária que arquitecta nosso cinza cenário de concreto em belíssimos arranha céus que encarceram São Paulo e oprimem a vida.

O desmatamento por aqui, de resquícios de Mata Atlântica inclusive, é possível reconhecer a olhos vistos pelos terrenos mais escondidos do bairro, assim, quando menos se espera surge um novo empreendimento das grandes construtoras que detém o verde do mundo, sem que ninguém se mobilize em prol da vida.

De repente eu a avistei ali, uniformizada num avental branco, com sua vasta cabeleira aconchegada numa elegante touca gourmet, a esperar pelos fiéis clientes operários das obras, que nos intervalos do trabalho, ali se encontram diariamente para o café matinal acompanhado dum bolo do dia, naquele em especial ,um de milho recém assado num forno a lenha.

Tudo impecavelmente higienizado.

Ao me aproximar não pude deixar de puxar uma conversinha enquanto eu saboreava o seu dois em um. "Saí da dieta", brinquei com ela.

Foi ali que descobri que há anos ela vive daquele trabalho autônomo e empreendedor que lhe garante um sustento confortável bem acima do que qualquer outro trabalho assalariado lhe garantiria dentro do seu atual grau de instrução.

"Moça, estudar nesse país não dá camisa para ninguém não, preferi estudar minhas receitas de bolo, moça"

Notei um certo desânimo naquela fala.

Então lhe perguntei se ao menos recolhia a previdência para um futuro mais garantido."ô moça, acorda, aqui não há futuro garantido para o trabalhador, previdência por aqui é só para alguns...então faço a minha poupança!".

"E a fiscalização não te incomoda?"

Não Moça, aqui é quase fim de mundo, mata fechada, só se tiver algum problema de atrapalhar a vizinhança e alguém denunciar.

Meu trabalho é honesto , moça, um cafézinho fresquinho com bolo caseiro, tudo bem limpinho, até a ronda da segurança é minha cliente!".

Acabamos rindo juntas, paguei meu consumo, irrisórios e bem empregados dois reais, e saí dali "lambendo os beiços" de tanta gostosura e certa de que as dificuldades sociais enxergam muito bem a dinâmica dos nosos entornos.

Fiquei a imaginar porque alguém denunciaria aquele trabalho honesto sem sequer denunciar tantas árvores que vêm abaixo todos os dias em nome da especulação imobiliária que implode São Paulo.

O trabalho...algo tão essencial quanto a própria vida seca daqui.