Dia
Era meio-dia. Hora quente e inconstante em que o sol queima estômagos e só pensamos em banho, ver novela e não ler aquele livro – ou numa salvação mais real. “Se houvesse uma cachoeira no meu quintal”, disse a prima pousando o prato raso sobre a janela. O cachorro esperava a muxiba e nos olhava com olhos fraternos como se dissesse “amo todas vocês”. Parecia mesmo amar, ou iludia-se apenas em sua condição de bicho sem cosciência. Mamãe limpava as panelas com força, suava no vestido de alça, os seios pendurados fazendo um balanço que expressava um aconchego irresistível. “Toc, toc, toc”, ela batia a colher no prato, lá ia o cachorro comer os restos, todo bobo e ela numa gentileza de mulher boa, aquela paciência meio sofrida. A prima parecia triste e eu comia quieta para disfarçar. “Tem sal pra botar?”, ela perguntou me olhando com suas pupilas embaçadas, como se clamasse. Enfiei o garfo na boca e apontei para a viga que se rachava: Papai ficou de consertar. “É, ficou”, ela respondeu, e foi como se se dispersasse. Retirou-se, tomou um banho. Banho frio. Recostou-se na janela, o cabelo pingando, a nuca geladinha, fresca. Começou a chorar observando mamãe que brincava com o cachorro “inhoc, inhoc, inhoc”, ele correndo tosco, desnorteado, dum lado a outro da cozinha em rompantes extravagantes de alegria gratuita, afinal os cães não devem nada a ninguém e não têm a cabeça a prêmio como nós. A prima pegou um copo com água e, sem disfarçar, perguntou a mim que comia como uma porca sem entender: “Como pode um cachorro ser mais feliz do que eu?”. Pousei o prato sobre a mesa. Houve silêncio. Era quase uma da tarde.