A porta aberta.

 

                     Durante muitos anos, ela observava a casa em frente. Sem nenhum alarde entreabria a cortina da enorme janela e ficava ali naquele mesmo canto, esperando que algo acontecesse. Quem sabe uma visita, filhos, nora e netos ou amigos. Perdeu ali naquele canto, anos de sua vida se tivessem sido contados todos os minutos que correu à janela com a esperança de que algo estivesse acontecendo. Mas que nada. Até aquela manhã tudo era tranquilo demais, as plantas cresciam desordenadamente e cobriam a fachada do antigo casarão que jamais passou por uma reforma e ainda guardava a arquitetura típica dos anos cinquenta, inclusive o chafariz, embora desligado.

 

                      Ela lembrou-se de quando ficou viúva, há doze anos e todos os vizinhos e conhecidos da redondeza vieram dar-lhe os pêsames mas aquela figura sequer dignou-se a encará-la, permaneceu ali guardado em seu mundo, alienado de tudo e de todos e no domingo seguinte enquanto era realizada a liturgia na igreja, ele apenas parou da porta principal da igreja matriz e ficou ali sem sequer fazer o sinal da cruz, retirando-se antes mesmo da dispensação do Padre.

 

                      Em suas poucas aparições, ele mantinha um ar sombrio, porém não era austero e se alguém o cumprimentava, apenas maneava e com a cabeça ou um dos braços sinalizava quase indiferente sem fazer qualquer indicação que permitisse uma aproximação. Também quando os meninos brincavam na rua e arremessavam a bola no quintal, mesmo diante de toda gritaria seu único gesto era vir da mesma maneira, com os braços para trás e ombros caídos, pegar a bola e entregar ao primeiro que surgisse, fechar o portão e refazer o caminho estreito entre a vegetação até não poder ser mais visto. Ele não furava as bolas, não ameaçava falar com os pais, simplesmente entregava a bola e recolhia-se ,e, isso a perturbava de tal forma já que esperava uma reação qualquer, qualquer uma, e como nunca vinha ela praguejava e voltava a sua rotina de observação.

 

                Algumas poucas vezes via o correio chegar com pequenos volumes e sair rapidamente.

 

             Hoje finalmente todas as suas fantasias seriam ou não desvendadas, mas algo não a deixava entrar, uma estranha sensação a tomava e ela só conseguia rever a cena dele sendo retirado numa maca, de peruca encaracolada e loira, de vestido vermelho e saltos altíssimos, ela o reconheceu apenas pelo enorme bigode. Um misto de compaixão e curiosidade,  talvez ele tenha vivido ali momentos de extrema solidão, ou noites de orgias, mas elas só saberia se atravessasse finalmente aquela porta.

 

            Decidida a descobrir quem era aquele homem que por tantos fez parte de sua rotina, ela enfim atravessou a porta, tomando todo ar que era possível em seus pulmões, como se esperasse encontrar algo aterrador, o desconhecido que tanto esperava encontrar desfez-se ao ver sobre o aparador a imagem de Stª Sara e Nª Sª. De Guadalupe em um pequeno oratório enfeitado com velas e flores, as mesmas que tomavam todo a fachada. Outro passo e a sala absolutamente organizada e clara com poucos móveis rústicos, mas de extremo bom gosto. Caminhou até a estante, repleta de livros e álbuns de fotografias e viu aberto sobre a mesa de centro, também ornamentada de flores , outro álbum, com fotos de militares e algumas medalhas de honra ao mérito colocadas exatamente como seu esposo costumava fazer. Depos de 40 anos de casamento era fácil reconhecer os custumes e manias de seu esposo. 

                   Ela foi virando página por página e sobressaltou-se ao ver então várias fotos de seu marido ainda na época de serviço militar e outras onde ele estava à paisana e sua gastura foi aumentando a medida em que as fotos iam surgindo, entre tantas condecorações e honrarias, ficava claro agora quem era o homem que por tantos anos ela apenas observava de longe.

 

            Caminhou ainda por um corredor, entrou na primeira porta e olhando estarrecida viu no criado mudo a fotografia de seu esposo e o armário aberto exibindo peças de vestuário feminino. Ela refez o caminho de cabeça baixa , trancou a porta deixando a chave na fechadura assim como a encontrara, atravessou a rua e voltou para sua própria casa, sem respostas para tantas outras perguntas que faria a partir daquele dia.

 

 

Cristhina Rangel.

 

 

 

Cristhina Rangel
Enviado por Cristhina Rangel em 17/08/2011
Reeditado em 25/02/2016
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