Nego Biringa

Nego Biringa

Fui atendido por uma simpática secretaria. Fiz a ficha e aguardei. Entra o chefe da oficina com uma prancheta, perguntando:

-O que há com seu carro?

-Engasga e não anda.

A secretaria me serve água e um café. Folheio revistas novas, porém sem capas, que estavam sobre uma mesa junto com panfletos de propaganda.

Volta o chefe com uma nova pergunta:

-Quando engasga ele apaga?

-Não, não apaga.

-È melhor então o senhor dar uma volta junto com o mecânico.

Assumo a direção e me dirijo à BR. Rodo cinco, dez, quinze minutos e nada do desgraçado do carro manifestar o defeito. O mecânico me olhava de lado e senti que ele queria me chamar de barbeiro. Comecei então a caprichar na direção.

O carro pendia para a direita, mas sabia o motivo. Presumi que o mecânico tinha mais de cem quilos. Seu rosto lembrava minha querida vó Dadinha.

Quando olhei o mecânico, voltei no tempo e pareceu-me que o conhecia. Lembrei do mercado público do Estreito, aonde às quartas-feiras ia para a fila do Fato. Será que o conhecia da fila da buchada?... Não, não era... Talvez fosse do campinho, o campo da Líbia; porque diabos tinha este nome eu não sei, vou perguntar pro meu primo Roberto.

Donde conheço esse “negão”? A pergunta não saia da minha cabeça.

-“O dotô, é melhor a gente voltá!”

O carro não engasgava, não tossia, estava “gozando de plena saúde”.

Com cara de guri que mijava na cama, voltei pra oficina. Quinze minutos de silêncio e ainda pensava com meus botões:

-Eu conheço esse negão!

Saio da oficina inteiramente deslocado. Via o “Chaves” na TV, cochilei e sonhei comigo mesmo.

Agora percorria a minha rua enlamaçada, com um patinete de madeira. A cada impulso que fazia com a perna, jogava lama em cima de mim. Vi um garoto se aproximando com uma lata escura na mão. Acordei! Eureka! Descobri, já sei quem é o mecânico!

É o Biringa. Neguinho franzino, remela no nariz, vendedor de amendoim torrado. Não se enturmava. Filho de dona Maria benzedeira, pobre de dar dó. Ela não saia de uma cadeira, pois tinha elefantíase e seu pai ficara paralítico após a queda de um andaime. Biringa era o arrimo da família. A toda hora só se via ele subindo e descendo o morro do seu Bezerra com uma latinha preta na mão. Uma mistura de saudade e compaixão tomou conta de mim. Lembrei-me do seu sofrimento quando fora preso, e de todo o drama de sua família.

No Balneário havia um clube chamado Tamandaré. No final da tarde, Biringa vendia amendoim torrado para os jogadores de baralho. Um dia, um deles surrupiou uns grãos da lata. Biringa reclamou e o beberrão deu-lhe uma porrada no nariz. Biringa abaixou-se para juntar os amendoins tentando salvá-los, senão nesse dia não teriam nada pra comer.

O sangue estragou todo o amendoim. D. Maria não benzia dentes quebrados. O máximo que pôde foi colocar um pano no nariz. Biringa, com os beiços duplamente inchados e uma dor violenta na boca, pois um dente cortara sua língua, passou por mim sem a lata e não deu nem tempo de eu perguntar o que acontecera.

Pela manhã, vi Sauvito, delegado de polícia, com seu ajudante, o soldado Jarbas, subindo o morro. Fui atrás. Em frente ao portão da casa de dona Maria, Biringa estava sentado em cima de um toco.

Não ouvi nada e tampouco foi dito qualquer coisa quando os dois desceram o morro com Biringa no meio.

Eu tinha nove anos e Biringa, mesmo não sabendo sua idade exata, era mais novo do que eu.

Na verdureira do Seu Luís, que ficava do lado da barbearia do Seu Mário, que me cortava o cabelo na marra, me deixando um topete horroroso, foi que ouvi o que tinha acontecido.

Biringa tinha voltado ao clube. Entrou sem fazer alarme, cuidadosamente se colocou atrás daquele que havia lhe agredido e, num único golpe certeiro, enterrou um canivete no coração do infeliz. Não soube eu o que aconteceu depois, mas um dia meu carro vai engasgar de novo e eu vou dar um abraço bem forte naquele negão!

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