A CONCORRÊNCIA

A CONCORRÊNCIA

No tempo das crenças cegas e verdades absolutas, um homem, em seu alto conceito terreno, vivia na maior felicidade. Tinha dinheiro, muito dinheiro... e um cargo importante na política local, que faziam esse seu estado de espírito. Tinha várias empresas e muitos empregados que dirigiam os seus negócios. Grande parte dos seus lucros provinha dos impostos que, por sua ordem, eram sonegados e dos baixos salários que pagava aos seus empregados.

Vivia em paz com sua consciência e com a Igreja, tendo em vista que, com polpudas doações com que aliciava o velho frei, presumia-se quite com Deus e os homens, quanto às suas falcatruas, no trato com seu enriquecimento. Ainda que lhe vinham débeis, mas frontais, aconselhamentos por parte do velho e bondoso frei, que em sua casa tinha trânsito livre. Em suas conversas, quando aos domingos este ilustre representante da Igreja “filava” o almoço em sua mesa, dizia-lhe para ser mais vigilante com as coisas espirituais; que, enquanto ele – o abastado comerciante – tinha lauta a mesa, seus empregados nem sequer uma boa refeição tinham todos os dias, muito menos um pedaço de carne para servir a seus filhos, tendo em vista os baixos salários pagos para eles. E vinha – o frei – com os sermões seculares da Igreja católica, de que, ao morrer, iria para o inferno se não desse melhor direcionamento à sua vida aqui na terra.

Parecia até pressagio do Ministro, amigo da família. Certo dia, ainda em plenas forças da idade madura, cada vez mais picante em sua fonte ilegal de enriquecimento, o afável e sorridente homem foi levado às pressas ao hospital, sentindo dores no peito, chegando ao Pronto Socorro já sem vida.

Chegando perante o trono de Deus foi logo dizendo suas verdades:

– Sempre que pude, ajudava a igreja na minha cidade, para o padre fazer suas caridades.

– Toda sua vida está anotada neste fichário. Não se incomode com relatórios.

Deus mandou que sentasse numa poltrona da sala contígua. Era uma enorme sala e, por conseguinte, a fila de poltronas era interminável... todas elas ocupadas por almas de terno e gravata e anéis de ouro ornando-lhes os dedos, como ele próprio.

O pobre homem, ainda crente que estava quite com as leis de Deus, já estava ficando impaciente com a demora de “ser atendido”. Levantou-se da poltrona e se dirigindo ao anjo que caminhava para lá e para cá frente à longa fila, perguntou com agressividade:

– Isso aqui parece com a terra. Parece a fila do INSS. Eu sou rico e pretendo saber logo em qual o apartamento que vou ficar.

O bondoso anjo, já acostumado a esse tipo de gabarolices, pediu educadamente para acompanhá-lo. Depois de andar por corredores e mais corredores, finalmente chegaram. Entregou o galinho de briga para outro anjo e retirou-se em silêncio.

– E então, qual o meu apartamento?

– Aqui no umbral não temos apartamentos. Vai andando por aí e procura algum conhecido e sentem em algum lugar para planejar o futuro.

Depois de desacatar a todos os que não se pareciam com ele e os demais que ali estavam, vestes rotas, face congestionada e com o corpo cheio de feridas, resolveu acalmar-se para estudar uma estratégia que o livrasse desse, que lhe parecia o inferno. Pensou de si para consigo: - “será que o velho padre tinha razão? Isso aqui é tal qual pintavam o inferno lá na terra”. Mas nada de aparecer os ditos diabinhos! Passou um mês, dois meses, vários anos... e nada. Certo dia, já extenuado “fisicamente” e cansado dessa situação, que cada dia mais se parecia com um prédio velho e em ruínas, cheio de mendigos, pediu uma audiência com o chefe.

– O que você quer, pergunto-lhe um homem vestido de uma túnica alvíssima, barbas e cabelos brancos, mas de ares muito bondosos e humildes.

– Eu já estou de saco cheio disso aqui. Preferia viver minha vidinha de trabalho lá na terra do que ficar aqui. Eu quero falar com o chefe.

– O coordenador do umbral sou eu, pode dizer o que pretende, por favor.

– Faz mais de meio século que estou esperando uma solução para o meu caso e ninguém me ouve. Como é – céu ou inferno?

– Deus, nosso pai, tem seus desígnios. Ele não julga mas cobra qualquer que seja a falta cometida. Dessa forma você terá que esperar sua vez para iniciar o tratamento dessa nova etapa da sua vida. Olha ao seu redor e verá inúmeras almas, já mais conformadas, esperando esse momento.

Vendo a calma com que seu interlocutor falava, sem uma só vez alterar a voz, tornou a dizer:

– Eu nem sei quais os meus pecados, quanto mais se vou para o céu ou para o inferno para arder no fogo eterno, conforme disse o velho frade lá na terra?

– Meu amigo, Deus é justo e bondoso. Nenhuma alma receberá esse castigo. Todos os espíritos são seus filhos muito amados e cada um em particular, sua obra-prima. Quando ele os cria e lhes dá o livre arbítrio, é para que discirnam o bem do mal. Mas sempre lhe dá meios para zerar suas dívidas para com Ele. Por isso, procura no fundo da sua consciência e verá que aí está seu inferno, que deverá resgatar com seu profundo arrependimento.

O homem entendeu o que o coordenador lhe dissera. Entendeu, também, que com a sua arrogância só fazia piorar sua situação. Entendeu, ainda, quiçá por intuição do mestre que lhe falara, que quanto mais ele se adaptasse aos desígnios do Senhor neste plano, mais cedo teria as respostas para suas perguntas. Retirou-se de cabeça baixa, procurou o seu cantinho, sentou-se no chão mesmo à sombra de uma árvore e começou a repassar todos os anos da sua vida terrena.

Nascera de pais ricos que tudo de material lhe favoreceram. Dinheiro, carro, estudo. Com seu dinheiro ganhou honrarias e amigos que lhe ensinaram como aumentar essas quantias. Passou a desprezar os pobres, que, para ele, só eram peças utilizadas no trabalho, para que os ricos tivessem sempre mais riquezas. Aplicara toda sua prodigiosa inteligência nesse sentido – falcatruas, maquiagem de notas fiscais e tudo o mais para ter menos despesas e mais lucros.

Nessa profunda reflexão viu bem claro os intermitentes avisos do bom frei, que lhe chamara a atenção sobre essa sua fome de lucros. Nunca dera ouvidos a ele, mas, agora, viu bem nítido que estava ali a sua cegueira. AH! Se pudesse voltar atrás e reparar o mal feito, utilizando bem o dinheiro que, afinal de contas, era só para sua utilização lá. Nem um só copo de água comprava neste plano em que agora se encontrava.

Ficou alguns dias assim angustiado com a enorme dor que lhe causava o arrependimento. Mas, agora é tarde, pensou. Somente Ele, se é um pai bondoso como disse o coordenar com quem falara dias atrás, poderia salvá-lo. Enxugou as lágrimas para que não vissem seu abatimento, (ainda predominava o orgulho que a fartura da terra proporcionara-lhe) e foi falar novamente com seu chefe local. Porém, agora, com o topete murcho e deitado.

– Com licença, disse respeitosamente, permite-me uma palavra?

– Pois não, admitiu o espírito da vestes alvas. Pode falar.

– Estive todos esses dias de briga com minha consciência e concluí que fiz tudo errado na minha vida lá na terra. Quando poderia ter feito a felicidade de tantas famílias, quis eu ficar com todo o dinheiro arrecadado. Qual será agora o meu destino?

– Caríssimo amigo, estou sentindo o seu sincero arrependimento. Sabia que você cresceu aos olhos do Pai? Vai, recolhe-se e ore pedindo a Deus perdão pelas suas faltas e aguarde.

Alguns dias depois o coordenador o chamou:

– Meus parabéns. Por seu sincero arrependimento e a fé que depositou no Senhor, nosso Deus, você está listado para ser um dos próximos a reencarnar e participar, novamente, do núcleo familiar que deixou na terra ao desencarnar.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 17/08/2011
Código do texto: T3164878
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