Just Happy
Diante do espelho buscava uma referência de sonho. Seus olhos eram os mesmos, castanhos e ligeiramente estrábicos, mas maquilados acendiam feito estrelas; os lábios finos ganhavam volume e tornavam-se rubros, infantilmente desejáveis. As mãos que de rústicas só tinham o formato, sempre leves no tato, eram encobertas com luvas negras, o braço hirsuto mascarado com uma pele extra-delicada, seda superficial. Cílios postiços, cabelos loiros falsos e pó rosado nas bochechas para dar aquele tom suave, não feminil o bastante para enganá-lo. Era uma máscara? Ele sabia que sim, mas era uma máscara que pertencia aos outros, não a ele que nascera para ser feliz. Os pés planavam sobre saltos que de tão altos o transportavam a uma realidade de sentido, de existência. Nascido Ismael da Cruz, a noite – ou a vida – dava-lhe o nome de Amanda Garbot. Dançava numa boate na última esquina da Rua de Baixo, ganhando quarenta reais por hora dançada, fora gorjetas. Quando subia ao palco, sentia-se como um sol cujo calor consome para dentro e estoura chispas que espocam violentas no ar. Andou tendo uns sustos, os brutamontes do beco viviam lhe roubando os cigarros e lhe provocando humilhações imperdoáveis, não fosse por seu coração tão paciente e maduro. Sabia que a intolerância é o medo do homem, embora não o justifique. Sabia também que a felicidade não consiste na revolta, e sim na certeza de agir conforme seu desejo mais profundo e verdadeiro. Ser feliz é não conter-se. Deu um jeito nos brutamontes mudando o caminho, já não andava pelo beco, fazia desvio pela rua de trás. Escondia-se? Não. Evitava a violência do rancor, do aborrecimento, do impulso de revidar, chorar. Sorria triste ao lembrar-se dos brutamontes que poderiam ser seus amantes, amigos, comparsas na alegria. Não chorava muito, apesar das lágrimas guardadas. Achava-se lindo, lindo como nenhum outro e isto bastava. Era amor-próprio, descobriu sem precisar fazer comparações. Amava-se e nisto justificava quem era. Gostava de ser, aparecer, que o mundo o visse tal qual uma jóia viva que rebrilha faça sol ou chuva. Quando tinha medo, desfazia a maquilagem, tirava a peruca, descia dos saltos. Mas a imagem que via diante do espelho era a mesma: uns olhos meio estrábicos e um sorriso de flerte com a vida. Não havia disfarce. Queria ser feliz, e sabia como.