Café-com -leite
Eram assim todos os dias. Seguia para a escola e via sempre mesmo lugar, aquela mulher bonita, vendendo café na feira. Com certeza acordava lá pelas quatro, cinco da madrugada, e assim, igual a tantas outras cuidava da casa e dos filhos antes de ir para o trabalho.
Ela não era cheia de vaidades. .Apenas tinha uma que não abria mão: Os cabelos... .Ah! Deveriam estar impecáveis, com uma flor do lado, que lhe dava certo ar de sofisticação.
- Nossa! Fui me meter nesse trânsito infernal! Onde isso vai parar?Gritei enquanto observava a mulher com aquela flor nos cabelos.
Deveria vir de ônibus. Quem sabe durante o trajeto, alimentava o sonho de ser mais do que uma simples vendedora de café .Afinal,eu no seu lugar pensaria.
Comecei a imaginar a cena matutina daquela viagem, naqueles coletivos lotados com gente suada e o falatório ao fundo. Nossa que horror!
-Quem vai descer? Perguntava o motorista.
- Eu! Dizia nossa vendedora de café.
Arrumava as sacolas, remexia a garrafa térmica e os copos quase sempre a cair, e ia tentando abrir caminho entre os passageiros. Ônibus lotado!Sempre um engraçadinho a dizer com um ar de deboche: - Vai ai um cafezinho?Ela não ligava, era apenas um bocó, um desocupado querendo chamar atenção.Apenas isso!
Quando conseguia descer já ia avistando sua barraquinha, e desejava que a venda fosse boa, porque tinha caderno para comprar, sapato e fora o jantar, uma vez que o almoço já estava garantido. Um tucunaré que ganhara do companheiro peixeiro que vivia a tomar seu café sem ao menos perguntar quanto deveria pagar por cada xícara.
Passava a vassoura no chão, um pano úmido em cima da banca e depois estendia aquela toalha branca enfeitada com renda. Que maravilha de desenhos! Era tudo tão miudinho e também tão belo, como aquele mundo em que a nossa vendedora vivia... Mundo pequeno, porém mágico. Ela era amada e tinha seus filhos com saúde, uma casinha pequena, mas, era sua! E isso era o que importava.
-Quero um café- com- leite, dizia um.
_Pra mim um café puro e um cuscuz de arroz, falava outro.
E lá ia a mulher vendendo sonhos, também, porque quem saboreava aquele café simplesmente, sonhava! Sei disso, porque muito eu viajei nos meus pensamentos enquanto tomava aquele café...
Sonhava em ter dias melhores. Dias em que eu não precisasse acordar tão cedo e ter que ir para aquela escola onde estaria confinada a morrer como mera professora da educação Infantil, não que essa fase não tenha seus méritos, mas, pelo menos naquela escola não havia projeção de carreira. Havia um profundo desrespeito ao nosso trabalho. Eu queria mais da vida. Queria ir além! Conquistar títulos, ter um carro do ano... Enfim tudo que tivesse direito para ter uma vida digna,pois na minha visão aquilo era sobrevida,pois não sentia satisfação em viver daquele jeito:não era de fato valorizada naquilo que fazia,a começar pelo salário que ganhava, pois,nem dava para investir nem para qualificação profissional.
.Apesar da luta diária, ainda encontrava motivos para sonhar, e àquela hora do café era bem estimulante para isso. Enquanto tomava o cafezinho sonhava em morar longe daquele lugar de mesmices. Aquilo era um tédio! Nada mudava, passavam-se os anos e parece que tinha assim uma espécie de máquina que congelava o tempo, porque as pessoas se habituavam a mesma condição de vida e pior que gostavam disso... Meu Deus!
Eu sempre refletia sobre isso enquanto saboreava aquele café.
-Quanto deu ai moça, meu prejuízo? Era o que eu sempre escutava
.Como alguém poderia chamar aquele café de prejuízo?
-Só dois reais, moço! -Respondia a vendedora que recolhia o dinheiro e colocava numa caixinha com uma estampa desbotada pelo tempo. Era uma estampa de flores. Flores! Igual aquela que enfeitava os cabelos da Solange. Sim! Solange era o nome da vendedora. Só soube disso porque um conhecido passou e gritou o nome dela bem alto.
Agora não era mais só a vendedora de café ela tinha nome: Solange! Solange de flor nos cabelos... Com flores na caixinha e botões de sonhos a desabrochar. Talvez um pouco desbotados pelo tempo, mas ainda estavam lá.
Olhei para o relógio já era hora de seguir meu caminho até a escola. Seria mais um dia... Eu também sonhava e fazia outros sonhar que um dia seriam alguém... Muitos se contentavam em ser igual a mim. Ora que absurdo de projeção de vida, pensava. Eu querendo evoluir e eles... Bem... deixa pra lá,melhor arrumar o cabelo,retocar a maquiagem e seguir .
Passaram-se os anos e eu havia mudado de vida como almejava, obtive meus títulos, meu carro do ano e emprego seguro. Retornei àquela cidade em uma das minhas viagens de férias e para meu espanto olhe quem encontrei?Isso mesmo! A vendedora de café. A Solange! Como é possível?Continuava ali com a mesma toalha de renda branca, a caixinha de flores ainda mais desgastada pelo tempo quase furta cor, e aquela flor nos cabelos?Bem pelo menos eles estavam diferentes. Agora estavam prateados! Conservara também o sorriso. O sorriso sereno de antes. Vá lá que a pele estivesse mais enrugada, porém, parecia feliz. Os filhos cresceram, o marido morrera, mas a casa continuava sendo sua, porém, maior e com o acabamento que queria. Tudo isso, ela conseguira, com a indenização da morte do esposo, vítima de acidente no trabalho.
Não me contive. Desci do carro, pedi um café com aquele bolinho, que só ela sabia fazer e em seguida perguntei meio sem graça: - O tempo passou, entretanto, você continua aqui e diz estar feliz com toda sua situação. Diga-m: Continua vindo nesses ônibus lotados pra cá?
Ela fez uma cara engraçada e disse:
-Sim, continuo!
Não me segurei.
_Mas você ainda diz isso sorrindo?
Solange respondeu:
Claro! É tão bom sentir o carinho das pessoas. Aqui chego até a fazer amizades sabia?
Eu desatei a sorrir.
-Bom? Ora, ora, Dona Solange faça-me um favor! Bom?
Num momento sarcástico falei enquanto tentava conter os risos:
- Minha senhora o tempo passou e parece que você ficou parada nele, não mudou de banca, continua a mesma caixinha de flores desbotadas e nem sequer trocou a toalha de renda, a única mudança que vejo são dos seus cabelos, mas, até a flor a senhora conserva a mesma. Como pode viver com tantas mesmices e não enfadar-se?
Ela ajeitou o avental meio sem graça depois sorriu e respondeu:
- Sabe doutora é que eu tinha medo de mudar e desagradar o freguês. Vai que eu mudo as coisas e a senhora e os outros não gostassem? Diga-me não ia perder uma boa venda no dia ia?Sem contar que se terminasse a vendinha como ia viver?A senhora me desculpe, mas é que eu nasci pra isso fazer café e bolinhos. Sou feliz sim! Afinal tenho clientes maravilhosos como a senhora que mesmo depois de anos não se esqueceu de dar uma paradinha aqui e saborear um cafezinho. Isso me realiza! Ver que coisas tão simples ainda atraem gente importante como você. Quando estou vindo pra cá, não me importo com o ônibus cheio, a fila, o barulho da feira nada disso importa. O que vale é ver o prazer que trago na garrafa térmica inundar de alegria a manhã quem passa por aqui. Criei meus filhos com esse dinheirinho e embora hoje nem precisei disso pra comprar suas coisinhas eles entendem que me sinto feliz aqui.Neste lugar fiz amigos,escrevi uma estória de ver gente satisfeita .Meu prazer está em ver o prazer do outro ,e meu café é a forma que descobri para conseguir isso.
Depois de ouvir tudo aquilo, vi a pequenez que havia em mim. Eu no meu egoísmo não percebia o outro. Que vergonhoso! Olhei para meu anel de Bacharel em Direito, olhei para meu carro do ano e lembrei aonde chegara..Alcancei metas, mudei de cidade,também mudei a cor dos cabelos,comprei roupas refinadas ,jóias...Tinha tudo que desejei,mas que triste! Havia perdido o prazer nas pequenas coisas. Bem, quem sabe ainda possa recomeçar e recuperar o tempo perdido.
- Vou querer outro cafezinho, por favor! E... Um bom papo pode ser?
-Claro que sim! Puxe mais o banco pra frente e vamos prosear.
-Mas me diga quanto foi mesmo aquele carro? Disse Solange.
Passei a mão pelo rosto já suando em imaginar o interrogatório. Dei um sorriso e pensei:
-É! .nada mudou por aqui. Melhor desconversar e sair de fininho, fazer o quê? Já estava sentindo saudades dessa vida café com leite.