Sem endereço

O menino bateu à minha porta às duas horas da tarde. Eu almoçava sem ter fome, estava cansada e com medo de abrir. Quem me visitaria àquela hora? Quem lembraria de mim ali tão disfarçada? Eu cujo endereço sempre fora a solidão. Eructei para dentro, pousei o prato e fui abrir. Diante de mim, o menino segurava sacolas plásticas. “Ah, sim!”, era o mercadinho, “Entre”, eu disse sem que ele me compreendesse, afinal eu falava cheia de medo como uma menina imatura a quem arrancaram as meias na noite gelada e cujos pés ficaram nus, susceptíveis. Eu repeti que ele entrasse. O menino assentiu com a cabeça, tirou as sandálias com uma humildade que me constrangeu. Entrou pisando levemente no tapete velho e esperou que eu o coordenasse. Ordenei que pusesse as sacolas na mesa, mas não esperasse gorjeta. Era sábado, eu estava feia, triste e de mau humor. Ele não pareceu indignado, ao contrário, calçou as sandálias surradas e retirou-se, antes me desejando uma boa tarde. Fechei a porta com dureza, o punho dolorido daquela humildade tão plácida, aquele menino tão generoso em seu amor. Eu fui tão rude, praticamente o expulsei da minha casa, sempre escondida atrás de minhas paredes. Poderia tê-lo convidado para almoçar, seria lindo comer em sua companhia, falaríamos ambos de nossas vidas, eu contaria a ele como fui feliz na minha viagem a São Paulo, ele me diria como era bacana sua vida de entregador. Eu o deixaria beber quanta limonada quisesse, havia litros na minha geladeira. Poderia lhe contar do sonho que tive ontem, deixaria que ele tocasse meu cabelo, que me fizesse cócegas, eu estava precisando rir e ele seria minha via de escape, meu subterfúgio. Visitaríamos o coração um do outro. Ah! Seria mesmo uma alegria tê-lo como amigo, tê-lo ao meu lado como um confidente. Juro que seria capaz de revelar a ele meus mais profundos segredos, não haveria máscaras. Mas eu não o convidei e por isso fechei a porta. Meu coração oxidado não poderia amá-lo. Ele se foi sem sequer me dizer um nome, apenas aquele sincero boa tarde que me iludiu, encheu meu peito de uma coisa meio perigosa, a esperança. Conferi as sacolas que ele deixara sobre a mesa, havia um vidro de azeitonas, um quilo de sal e doze potes de manteiga. O que eu faria com tanta manteiga? Só uma desculpa para o menino ter de entregar minhas compras, uma mentira meio boba. Sentei para terminar meu almoço. Como todos os sábados, eu estava feia e comia sem fome.

Taylane Cruz
Enviado por Taylane Cruz em 15/08/2011
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