HISTÓRIAS DA AMIZADE-II


OS CÃES PREVIDENTES

Era uma vez um sujeito que vivia sozinho num sítio, bem longe da cidade. Possuía meia dúzia de carneiros, alguns porcos, um boi, que puxava o arado, uma vaca que lhe fornecia leite, um cavalo que lhe servia de transporte, umas galinhas, que o abastecia de ovos e carne, e uns cachorros, que além de servir de guardas, lhe fazia companhia. Eram, no dizer dele, seus únicos amigos. 
Um dia sobreveio uma grande tempestade naquela região e o sítio ficou incomunicável. As águas do rio subiram e levaram todas as pontes. A roça que ele plantara apodreceu em meio à enchente. Ele ficou ilhado e sem qualquer recurso para sobreviver. A tempestade durou muitos e muitos dias. Apertado pela fome, o pobre homem começou a abater os animais para se alimentar. Comeu primeiros os carneiros, depois os porcos, em seguida os bois e por fim, como a normalidade estivesse demorando para voltar, o cavalo. Assim que ele levou ao fogo o último pedaço de carne do cavalo, os cães se reuniram e resolveram fugir.
─Ingratos! Resmungou o sitiante. ─ É assim que vocês se intitulam o melhor amigo do homem? Justo quando tudo parece estar perdido, vocês me abandonam?
─Não somos ingratos─ responderam os cães. ─ Somos apenas previdentes. Se você não hesitou em sacrificar quem sempre o ajudou a sobreviver, o que não fará a nós, que só temos amizade para lhe dar?

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INFIEL NO POUCO, INFIEL NO MUITO

Antonio pediu a João que lhe emprestasse uma pequena soma em dinheiro. Disse que sua vida estava ruim, se encontrava desempregado, sem dinheiro nem para as despesas de sobrevivência. João, que era seu amigo de há muito tempo, prontamente lhe emprestou. Passou-se muito tempo, Antonio superou a sua crise e prosperou. Mas nada de pagar o amigo. Um dia, João, com muito tato e educação, para não magoar o amigo, lembrou-lhe da obrigação que havia contraído num momento de dificuldade. “ Que dinheiro?”, respondeu ele, ofendido. “Eu nunca lhe pedi nada. Você está louco”. E incontinenti, rompeu relações com João, acusando-o de malandro, estelionatário e outras coisas mais, por estar lhe cobrando uma dívida que não existia.
Tempo passou e os negócios de Antonio sofreram uma reviravolta. Ele faliu e perdeu tudo que tinha angariado nos tempos de fartura. Não sobrou nada da antiga fortuna. Mas ele era um comerciante esperto e tinha certeza que poderia se reerguer se conseguisse levantar algum capital. Ele tinha um amigo muito rico chamado Pedro. Eles haviam feito uma boa amizade nos tempos de prosperidade, freqüentando os mesmos locais da sociedade, os mesmos clubes e locais bacanas. Com a certeza de que o amigo não iria deixar de socorrê-lo num momento daqueles, foi pedir-lhe um empréstimo.
─Você sabe que eu sou um homem de palavra e não vou deixar de restituir o que você me emprestar. E também sabe que pode contar com a minha eterna amizade─ disse An-tonio a Pedro.
─Volte amanhã, vou ver como posso atendê-lo─ respondeu Pedro.
Pedro tinha um velho amigo chamdo João e com ele se aconselhava em todos os negócios que costumava fazer. Expôs a ele o caso de Antonio.
No dia seguinte, quando Antonio voltou ao escritório de Pedro, crente que o amigo já estava com o dinheiro na mão para lhe entregar, o que encontrou foi um ex-amigo, car-rancudo, muito pouco solícito e bastante inclinado a livrar-se logo da presença dele.
─ O que aconteceu? Perguntou João. ─ Você ontem estava tão inclinado a me ajudar e agora me trata dessa maneira?
─Eu soube do seu comportamento com o João. Você pegou dinheiro com ele e não só não devolveu como também negou que devia.
─Ah! Aquilo? Disse Antonio, com um muxoxo. ─ Era uma mereca tão insignificante que eu até me esqueci que devia. Com você isso não vai acontecer. É uma soma significativa e eu não nem tenho como esquecer ─ disse ele, com um sorriso maroto.
─Nem eu vou emprestar-lhe nada ─ respondeu Pedro, convidando-o para ir embora, com rispidez.
─Só por causa desse negócio com o João?─perguntou Antonio.
─Não─ respondeu Pedro. ─ Por sua causa. A verdadeira amizade não se aproveita dos amigos e quem não foi fiel no pouco com mais razão não o será no muito. E agradeceria muito se você não me procurasse mais nem me dirigisse mais a palavra

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DAMOM E PÍTIAS

Na antiga república grega de Siracusa, conta Cícero, o grande orador romano, viviam dois jovens filósofos, amigos desde a infância, chamados Damon e Pítias. Eles tinham muita confiança um no outro e diziam que nada poderia estragar a amizade deles. A amizade era tão forte que um seria capaz de dar a sua própria vida pelo outro.
Embora a cidade de Siracusa fosse, nominalmente, uma república democrática, nessa época, um tirano de nome Dionísio havia assumido o poder pela força das armas e go-vernava a cidade como ditador.
Pítias, que era democrata de carteirinha, andou fazendo uns discursos sediciosos contra o tirano. Nos debates na ágora, a praça pública onde os filósofos costumavam se reunir para discutir, ele dizia ao povo que nenhum homem tinha direito de ditar leis sobre os outros e obrigá-los a cumpri-los com a força do estado que os próprios governados aju-davam a manter.
Pítias dizia essas coisas e Damon, seu amigo, as corroborava, embora sem as apoiar publicamente. Encolerizado, Dionísio mandou chamar Pítias e acusou-o formalmente de traição e de espalhar a sedição.
E depois de um pequeno debate e um julgamento simulado, no qual seus ministros e apoiadores foram os acusadores e componentes do júri e ele o próprio juiz, Pítias foi condenado à morte.
Pela lei de Siracusa, todo condenado tinha direito a um último desejo. Assim, Pítias expressou a vontade de ir até sua casa despedir-se da família e resolver alguns assuntos que estavam pendentes. 
Esse era um direito do condenado, mas o tirano, temendo que o condenado escapasse, mesmo escoltado por inúmeros soldados, negou o pedido.
Pítias já tinha se conformado em morrer sem ver sua família, quando Damon, que estava presente no tribunal e havia servido de testemunha a favor de Pítias (inutilmente, pois o tirano já havia decidido condenar o seu amigo), levantou-se e ofereceu-se para ficar no lugar de Pítias enquanto ele ia até a casa dele.
Dionísio sabia da amizade dos dois e uma das coisas que mais honrava os dois jovens, e os fazia respeitados na cidade, era a propalada fidelidade que havia entre eles. Assim, logo pensou que além de acabar com a vida do inimigo, poderia também liquidar com a sua honra, pois certamente Pítias iria tentar fugir. Assim, num golpe só, liquidaria os dois e ficaria absolutamente tranqüilo com respeito à futuras dissidências.
Destarte, Pítias foi autorizado, com o acompanhamento dos soldados do tirano, a ir até sua casa, e dentro de um mês, voltar para ser executado.
Ele morava em um ilha, distante de Siracusa uns três dias de navio. Nesse ínterim, Damon foi atirado na prisão.
Um mês se passou e Pítias não voltou. E nenhuma notícia dele nem dos soldados que o acompanharam.
Passaram-se vários meses e os meses completaram um ano. Cansado de esperar, o tirano resolveu executar Damon e mandar um corpo de sua guarda até a ilha onde morava Pí-tias para prendê-lo, ou descobrir o que havia acontecido com ele.
Mas no momento exato em que Damon estava sendo levado ao local da execução, eis que Pítias aparece, correndo, espavorido, e prostrando-se ao pé do  tirano, implorou-lhe que soltasse seu amigo e tomasse a vida dele, como havia sido combinado.
─ Por que você demorou tanto para voltar? ─perguntou o tirano.
─ Os deuses tentaram me impedir ─ disse ele. ─ Passei apenas três dias em minha casa, e quando estava voltando para Siracusa, uma tempestade colheu nosso navio em alto mar. Toda a tripulação e os guardas que mandastes para me acompanhar pereceram no naufrágio. Só eu escapei. Mas tive de nadar de ilha em ilha até chegar aqui. Enfrentei piratas, os demônios do mar, a fúria dos elementos e a maldade de muitas pessoas que quiseram impedir-me de vir. Levei um ano nessa luta, e só agora consegui chegar.
Dionisio mandou verificar a história de Pítias e descobriu que era verdadeira. Não pode duvidar dela. Ele conhecia a saga de Ulisses, o herói de Homero, que levara dez anos para voltar de Tróia a Ìtaca, depois da famosa guerra entre gregos e troianos. Ele sabia que os mares da Grécia eram muito perigosos e os deuses muito caprichosos.
Esse episódio abriu os olhos do tirano. Ele o interpretou como um aviso dos deuses. Se eles respeitavam assim uma amizade, não seria ele que iria desrespeitá-la. Acabava de ter uma grande e inesquecível lição de amizade e lealdade.
─ A sentença contra vocês será revogada ─ declarou o tirano ─ Jamais pensei que entre os homens pudesse florescer tamanha fé e lealdade. Vocês me provaram que o mundo pode ser governado por um poder maior do que a força. Estão livres, mas no entanto,  deverão prestar-me um último serviço ─ completou o tirano.
─ O que desejas?  perguntaram os amigos.
─ Permanecei em minha corte e ensinai-me a governar fazendo amigos ao invés de inimigos.









João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 15/08/2011
Reeditado em 16/08/2011
Código do texto: T3161760
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