No bacanal do ônibus, todos se odeiam
“Tenho a obrigação de viver, sou um ator desalmado da repetição. Não agüento mais representar, embora o roteiro mude, a atuação deverá sempre ser da mesma forma. Quando tento improvisar, o diretor lá de cima me reprime.
Antes de sair de casa, cometo o erro de encarar o indivíduo do espelho. Vejo beleza apenas na moldura. Lembro o trecho de uma música que diz assim: ...me deste a vida, agora me ensina a viver. Tento viver a vida dos outros da minha forma. Coloco os fones de ouvido, eles são meu escudo protetor do mundo externo, a carapaça da introspecção.
Espero o ônibus no ponto lotado. Nem invento de acender um cigarro - minha melhor companhia - isto pode despertar a atenção deles, alguém poder reclamar, pedir fogo... Não quero arriscar.
Meu ônibus chega e está lotado. A parada esvazia e faz o maldito transbordar gente. Andar de ônibus é a máxima da promiscuidade, é uma orgia sexual, uma intimidade entre anônimos. Os corpos molhados da chuva trocam toques, odores e fedores, olhares e quem sabe até pensamentos. Brigo com o fone de ouvidos que falha, minha proteção sucumbe aos ataques, estou desprotegido. Começo a prestar atenção nas conversas alheias, nos corpos; não tenho pra onde olhar, pra onde fugir. A alma está presa ao corpo. Minha mente submerge neste bacanal.
Do fundo do carro, sobre os burburinhos, surge uma música horrível. O coitado deve ter tido o mesmo problema com seus fones, diferente de mim, sua extroversão extravaga com o alto-falante daquele maldito celular. Sou coxeado por trás. Para evitar a penetração imaginária, inclino-me pra frente e acabo por roçar meu pênis no ombro do desconhecido sentado: são as regras do bacanal, você deve interagir. Desconcentro-me da visão e do tato: agora sinto cheiro de merda. Fico pensando em merda: alguém deve ter pisado nela, alguém deve estar com a mesma roupa íntima há dias, merda, merda e merda. Invento versos sobre ela. Pisaram no meu pé! É impossível desencarnar num ônibus, os sentidos fisiológicos se encarregarão de encontrar e buscar sua alma onde quer que ela tenha se escondido. Pra descontrair, invento a introdução ao genocídio, mas sou interrompido antes de seu desenvolvimento. Dentre os corpos, um rosto está a encarar-me. Por que esse veado não para de me olhar?”
É o que aquele homem, que parece estar aflito, deve estar a pensar. Vou desviar o olhar pra não pensar que sou um veado. Ele precisa fumar um cigarro e relaxar. Imagino agora, o que deve se passar na mente daquela senhora que levou uma guardachuvada no olho. Coitada!