PINÁCULO DA TENTAÇÃO
“Lá em cima, no alto do céu, será que somos todos iguais?”
Ao chegar no topo do décimo quarto andar, o Capitão Jesus Batista Silva de Mello, bombeiro há 34 anos, sentiu um vento forte cortar-lhe os cabelos e apertou contra o peito a medalhinha de São Jorge; espantou-se com a enorme quantidade de ruídos e conversas que contrastavam com um local que deveria ser, normalmente, silencioso e pacífico. Demorou um instante até acostumar-se com o ambiente caótico, realçado pelo sol intenso e duro que castigava as cabeças sensíveis e os olhos despreparados. Tocou em um ou dois ombros, procurando o oficial responsável pela ação da Brigada Militar. Os homens, com caras entediadas, iam lhe apontando direções incertas, as quais pareciam não levar a lugar nenhum. Em meio à caminhada labiríntica, o Capitão percebeu o foco da aglomeração e caminhou até ela, acompanhado por um frio no estômago que parecia não querer abandoná-lo. Avistou, enfim, a dez metros, sozinho em meio ao céu azul, o dorso trêmulo e nu para o qual estava ali. Antes de poder tirar qualquer conclusão, um sujeito virou-se para si:
- Jesus! Finalmente chegasse...
- Boa tarde, Capitão Farias. Ele não falou nada? Vocês tentaram conversar com ele?
- O quê? E assumir a culpa caso o idiota resolva se atirar? Nem pensar. Nosso trabalho é prender bandidos, tirar gatinhos de cima de árvores é com vocês...
O Capitão Jesus ansiava desesperadamente por um cigarro, especialmente por ter de lidar com Farias, o brigadiano mais estúpido e arrogante que conhecia. Cravou os olhos, novamente, no sujeito sentado no parapeito do prédio, solitário e imerso em seus próprios pensamentos; invejou-o.
- Certo. Já que estamos falando no seu trabalho, tira todos os moradores daqui de cima. Isola este andar e o anterior. Limpa, também, aqueles malditos curiosos da calçada lá de baixo, não queremos um acidente ainda maior. Tem uma rede de salvamento vindo, neste momento, de Porto Alegre. Vai demorar pra chegar, mas talvez o peixe aí demore bastante, e, se isso acontecer, teremos um recurso a mais. Vamos começar logo o trabalho para que eu possa conversar com ele. Estou receoso, está muito quieto. Quieto demais.
- Saco; se já não bastassem as merdas que acontecem todos os dias, ainda temos que lidar com uma bicha dessas que não sabe sair da própria merda...
- Isso não é hora de desabafos; cada um tem o seu fardo. Nossa função é carregar o nosso, não questioná-lo.
- Por mim, ele podia se jogar desta merda de uma vez que estou cagando...
O homem saiu resmungando e cuspindo, dando ordens, aos gritos, a todos que passavam em seu caminho.
O Capitão Jesus, por outro lado, não desmerecia o sofrimento do suicida. Os olhos arqueados, caídos, pareciam demonstrar, pelo contrário, uma profunda piedade. Após um instante de reflexão, deu um suspiro profundo e caminhou lentamente; foi buscar o seu fardo.
- Oi, amigo! – anunciou, a uma distância segura. O homem virou-se num salto, despertando de seu sonho.
- NÃO TE APROXIMA, NÃO TE APROXIMA!!! EU VOU PULAR, NÃO CHEGA PERTO!! – apoiou as mãos trêmulas no parapeito que lhe servia de banco e inclinou o corpo para a frente, gerando gritos enlouquecidos de toda a multidão.
- Calma, amigo, calma, eu não vou me aproximar. Estou parado, veja! Só quero saber se tu precisa de alguma coisa. Fica tranquilo!
O homem encarou os olhos humildes do Capitão e, após um instante de hesitação, pareceu acalmar-se.
- Se tu der um passo pra frente, eu juro, por tudo que há de mais sagrado, que eu pulo desta merda e acabo de uma vez por todas com essa bobagem!
- Tem minha palavra. – prometeu o Capitão, com os olhos grudados nos do homem. Nervoso demais, pensou. Será extremamente difícil uma aproximação. Mais uma vez, apiedou-se do sujeito. Seu rosto contorcido parecia indicar um profundo sofrimento. Sofrimento este que o Capitão, talvez melhor do que qualquer outro, parecia compreender.
A vista, dali de cima daquele parapeito, devia ser ótima...
“- Onde estou!? PUTA MERDA, ONDE EU ESTOU!?
Jesus acordou, subitamente, em um quarto de motel. A vergonha que sentiu foi inexplicável. Começou a chorar, enquanto vestia, rapidamente, embora em silêncio – a fim de não despertar o vulto que ressonava sob as cobertas –, as roupas imundas e fedorentas. Sentia-se sujo, despudorado, enojado. Queria sair logo dali, correr para a rua e imbricar-se em uma viela qualquer, torcendo para não ser notado. Em uma esquina, parou para vomitar. Sabia que havia bebido demais, nem imaginava o quanto.
O sol batia impiedoso e castigava seus olhos doloridos. Os transeuntes fugiam daquele resto de homem, atravessavam a rua, com pressa, quando este passava perto. Mas o olhavam; sim, todos o olhavam, o encaravam, o julgavam e o condenavam, conscientes dos atos que havia praticado durante a noite, dos quais ele mesmo mal se recordava, embora soubesse. Ah, ele sabia...
Virou ainda meia dúzia de esquinas, crente de que estava sendo perseguido. De quando em quando, virava o rosto e olhava para trás, parado no meio da calçada, em busca daquele vulto maldito, cujo rosto não recordava, devido à bebida, mas cuja presença ele sentia, forte como se, ao seu lado, respirando constante e silenciosamente, estivesse agora.
Após alguns minutos, a sensação de perseguição foi, finalmente, apaziguada, substituída por outra: uma sede devastadora. Necessitava de água. Necessitava de água como poucas vezes já havia necessitado de algo. Sua boca, seca, amarga, grudava, tremia, implorava por aquele líquido precioso! Precisava, precisava de água! Reunindo o resto que sobrara de sua – normalmente – inabalável praticidade, calculou que, vestido como estava, sem dinheiro algum nos bolsos – roubado, pois, como tantas outras vezes –, a alternativa que lhe restava era ir para casa caminhando, caminhando rápido, para não ser visto. Mas, para isso, necessitava de água. Muita água para aguentar o longo trajeto que o aguardava.
Avistou uma torneira baixa, no interior de uma residência. Sabia que aquilo era loucura, imagina se fosse pego, preso, o que diriam seus companheiros!? Seria expulso da corporação, certamente! Mas a sede, maldita sede... Testou a maçaneta do portão e este abriu. Agiu rápido, então, ainda imerso na dúvida sobre o que deveria fazer. Baixou-se insanamente, contrariando as intensas dores musculares que sentia, encharcando o sapato que lhe sobrara – o outro ficara no motel, perdido sob a cama, provavelmente –, sujando com o verde da grama os joelhos da calça que, até a noite anterior, era a melhor que tinha. A recompensa foi a água, quente e com sabor de cano, ou cola de cano, mas ainda assim água. Bebeu com ferocidade animal; tanta que não pode suportar uma nova arcada de vômito: sujou boa parte da grama bem cuidada. O barulho foi alto e um morador ouviu: um homem gordo, de pijama e cara de sono abriu a porta, e chocou-se diante da presença de Jesus. Percebendo a sujeira que o outro fizera, enfureceu-se automaticamente:
- Mendigo filha da puta!!!! Safado, te arranca daqui, sem vergonha!!!
Jesus levantou-se, num pulo, e disparou a correr, desatinado. Metade do homem sumiu no vão da porta, mas logo voltou com um porrete nas mãos. Jesus não conseguiu abrir a grade, a maçaneta trancou, trancou não abre, não abre! Socou e a fez abrir, não sem antes levar uma porrada na cabeça que o fez desabar, em meio à calçada... Não acusou o golpe, desandou a correr, a correr para longe, deixando os gritos enfurecidos do gordo para trás.
Uma hora depois, quem entrasse em sua casa o veria sentado no chão úmido, encostado em uma parede qualquer, chorando copiosamente; em uma mão, um saco de gelo, o qual levava, constantemente, à cabeça dolorida; na outra, uma .38, engatilhada e pronta para atirar.
O gelo pra amortecer; a arma pra sentenciar.
Quantas vezes já enfrentara o mesmo dilema?”
Duas horas se passaram desde que o Corpo de Bombeiros chegara ao prédio de onde um homem ameaçava se jogar. A multidão, por mais incrível que possa parecer, não arredara pé desde então. Todos acompanhavam, lá de baixo, atrás do cordão de isolamento, aquelas duas miniaturas tão diferentes: a primeira, na qual os olhares insistiam em grudar-se, com o peito nu, sentada sobre o parapeito, a um passo da morte; a segunda, vestida com seu uniforme cinza, capacete preto, aproximando-se na velocidade de um passo a cada meia hora. Unidos e separados. Mais unidos que separados.
Lá no alto, o Capitão Jesus já havia conquistado um belo terreno, mas seguia preocupado, o estômago ainda dando voltas. Ainda sentia que lhe faltavam bons argumentos para comover o outro homem...
- Tu acha que existe céu? – indagou o sujeito, o olhar erguido. Falava já com certa naturalidade, após o bom tempo de conversa.
- Tu tá brincando? É claro que sim! Céu e Inferno, assim o Senhor o fez. Eis um bom motivo para ti descer daí, comer um sanduíche e esquecer essa coisa toda. Afinal, tu sabe pra onde vão os suicidas, né?
- Sei o que me contaram nas aulinhas de catequese. Mas, se Ele existisse mesmo, por que deixaria tanta desgraça acontecer?
- Livre arbítrio, amigo, as coisas ruins acontecem por nossa culpa, não Dele – confirmou o Capitão, seguro em suas palavras, evitando refletir muito a respeito.
- Eu gostaria de acreditar em Deus. Mas Ele não me comove muito; a ti sim, pelo jeito...
- Ah, com certeza. Minha fé é muito forte e atuante no meu Ser. Sou um homem que recebeu uma sólida educação católica.
- Os pecados passam longe, de certo...
-... – o Capitão engoliu em seco, acusando o golpe – Todos... todos temos pecados. É a condição humana.
- Mas alguns são mais difíceis de serem perdoados, não? Feios demais, horríveis demais... - dizia o homem, o olhar baixo, triste, desolado. – Será que o seu Deus, quando chegarmos lá em cima, no dia no julgamento, aceitará as nossas explicações, Capitão? Ele nos perdoará?
“- Jesus, vem cá!
O pai e a mãe do pequeno Jesus pareciam sisudos, preocupados. Estavam prestes a ter uma conversa séria com o gurizinho; um daqueles diálogos de pai para filho, uma lição importante, formadora de caráter. Necessitariam pisar em ovos, cuidando cada passo, a fim de fazer o filho compreender a decisão que tomariam sem que este se revoltasse ou ficasse traumatizado. A mulher sentiu um calafrio e buscou auxílio na imagem do Cristo crucificado, exposta melancolicamente na parede.
Logo, os arrastados passos foram ouvidos.
- Vocês me chamaram, mãe?
- Sim, filhinho, teu pai quer falar contigo... – anunciou a mulher. A mãe sempre mediava aqueles diálogos, já que o pai não conversava muito com o guri. Durante a semana, por exemplo, mal se viam, o homem estava sempre envolvido com o trabalho. Já nos sábados e domingos, o velho tinha sempre os amigos, a bocha e, vez que outra, o telefone, que tocava tarde da noite e algum serviço inesperado surgia, o qual a mulher parecia não gostar nem um pouco, pois ficava chorando desesperadamente, trancada no quarto. Assim, conversas como aquela eram escassas.
- Certo! – disse o guri, feliz por passar um tempinho com o paizão, mesmo pressentindo o caráter sério da palestra. De um pulo, foi parar no colo do velho.
- Não, Jesus!! Que mania de querer colo toda hora! Nem parece homem! Isso é coisa de veadinho!
- Senta aqui no sofá – intercedeu a mediadora.
- Desculpa, pai.
- Olha, Jesus, queremos conversar sobre o Júlio.
- O que tem ele, pai?
- Filho, eu sei que é muito triste, mas tu vais ter que parar de brincar com ele.
- Por que, pai? – questionou, os olhinhos arregalados.
- Filho, tu ouviu o Padre dizer, na missa, que Papai do Céu fez o homem e a mulher? E que o homem só pode casar com uma mulher? Um homem não pode casar com outro homem, lembra? É errado. Papai do Céu não gosta.
- Eu lembro que o Padre disse isso, pai!! Eu ouvi toda a missa, e nem fiquei cansado! Pode perguntar pra mãe!!
- Eu sei, filho. Mas presta atenção. O Júlio, filho, ele é um veadinho. É um homem que gosta de outros homens. Por isso, tu não podes brincar mais com ele. Se não, Papai do Céu vai pensar que tu também gosta de homem.
- Mas, pai, o Júlio não é homem... Ele é guri. E eu gosto de ti, e tu é homem! – piou o guri, já com os olhos marejados e tristes.
- Olha, Jesus, o Júlio vai ser um homem um dia, e ele vai casar com outro homem. Tu pode gostar de mim, eu sou teu pai. Mas não podes te casar com outro homem, porque é errado.
- Mas, mãe, eu gosto do Júlio, ele é meu melhor amigo... – disse, com dificuldades, o guri, já explodindo em lágrimas, em seguida. Não entendia muito bem o que o pai queria dizer, mas estava triste por perder o primeiro companheiro que havia feito na escola.
A mãe pegou o filho no colo e o levou para o quarto, o pequenino chorando e soluçando pesadamente. A mulher demorou, mas voltou para a cozinha, com os olhos vermelhos e marcados.
- Tu mima demais esse guri – disse o homem, secamente.
- Tu que é muito severo. Achei isso um absurdo. O Júlio só tem sete anos!
- Tu já viu o jeito que ele senta e cruza as pernas? Esse guri é veado, com certeza! E tu sabes o que dizem sobre o pai dele... Fugiu com outro homem, deixando a mulher e os filhos sozinhos. Essa história todo mundo já conhece: filho de peixe, peixinho é.
A mulher quis protestar, mas, no fundo, também temia a influência de Júlio. Além disso, o marido passava tão pouco tempo em casa que queria aproveitar sua presença, longe de brigas.
Jesus ficou chorando por um bom tempo, mas, horas depois, levantou-se, finalmente. A campainha tocou e o guri foi atender à porta, já sabendo que era Júlio. A mãe, na cozinha preparando o jantar, observou a reação do filho. Esse logo bateu a porta e subiu as escadas correndo.
- Quem era, filho?
- O veadinho, mãe!
A mulher olhou para o marido, sentado à mesa, lendo o jornal. O homem sorriu, orgulhoso:
- Filho de peixe, peixinho é.”
O Capitão Jesus seguia apelando para todos os recursos emocionais que conhecia:
- Tudo que peço é que tu pense nos teus filhos... Por mais difíceis que as coisas estejam no momento, eles ainda precisam de um pai!
- Que pai? Que merda de pai? Um pai que não consegue nem sustentar os filhos? Minha esposa, Capitão, me deu um ultimato: ou eu pago a pensão ou ela me denuncia! Vou ser preso! E aí, pronto, tudo acaba pra mim...
- Tens que ser forte, seguir procurando um emprego, logo tu vai encontrar! Tens que te estabilizar, e aí a tua esposa vai te dar outra chance! – implorava o Capitão, estranhando as palavras que saiam de sua boca.
- Não, não vai, não vai... Ela já tá morando com outro cara, um canalha aí... E eu? Passei os últimos dez anos com a ordinária e agora vou fazer o quê!? Pra quê!? Sem meus filhos e minha mulher eu não sou nada! Me diz, o que me impede de desistir? O que me impede de pular?
O Capitão Jesus pensou um pouco, buscando o argumento fatal, a resposta definitiva que venceria todos os argumentos do homem. Meditou o mais que pode, mesmo percebendo que estava demorando tempo demais. Pensou em sua própria vida, em suas próprias batalhas; por que lutar? O homem o encarava secamente, esperava respostas, ansiava de motivos para viver; o Capitão colou dois dedos na têmpora, massageando-a, necessitava pensar, necessitava convencer o outro; por que lutar!?
Os olhos do suicida começaram a ampliar-se, a indignar-se ao perceber que o homem não falava.
- Pelo que tu vives, Capitão!!? – os olhos do homem, aos poucos, começaram a tomar uma forma estranha, quase diabólica. – Qual é a merda do motivo que te faz levantar da cama todo dia, seu filho da puta!?
O Capitão não respondia. Começou a sentir-se pressionado, ofendido, violentado pelas furiosas palavras do outro. Buscava, insanamente, replicar suas perguntas, mas não conseguia nada, e apenas sacudia a cabeça negativamente.
- Tu és um merda maior do que eu, e ainda vem me encher com lições de moral!? Tu deveria é estar aqui do meu lado, seu bosta! – e, subitamente, começou a rir, o suicida, insanamente, assustadoramente; talvez o fizesse por não ter nada a perder ou porque os nervos estavam devorando-o; o que se pode afirmar, com certeza, é que o rosto do homem estava ensandecido, alterado, enlouquecido, mesmo. Enquanto ria como um louco, começou a balançar-se displicente, apoiando-se apenas na força dos braços; a multidão gritou, instantaneamente. O Capitão, em vez de tentar tranquilizar seu oponente, sentou-se no chão, completamente imerso em seus pensamentos. Parecia fora do ar...
“- Mais uma.
- Olha amigo, tu não acha que já bebeu demais?
- Vai te foder!! Tu é meu pai, porra!?
- Ei, ei, olha como fala, se não eu te jogo lá no meio da rua!!
- Só me serve mais uma e para de encher o saco...
O garçom, nitidamente a contragosto, tornou a encher, como já havia feito tantas outras vezes, incontáveis vezes, o copo de Jesus. Este, esparramado em cima do balcão feito um trapo sujo, parecia alheio à toda a agitação que o cercava, com a cara enfiada no recipiente de vidro. Apenas olhava, vez que outra, por cima do ombro direito, encontrando um ponto onde fixava os olhos, confusos pela bebida, o rosto sério e sem expressão.
Jesus estava cansado, enjoado, mas queria continuar. Necessitava continuar. Ainda sentia fisgadas de culpa e vergonha; vergonha mais que culpa. Nessas horas, escondia o rosto vermelho no meio dos braços, agarrava o copo com força e virava; mal terminava e já levantava o dedo indicador para o garçom: mais uma, mais uma, seu merda!! O pobre homem aguentava os insultos calado, em parte porque conhecia o outro e o temia; além disso, porque recebia generosas gorjetas pra “encher o copo e calar a boca”, nessa ordem. Assim, enchia o copo e calava a boca, fingindo não ver, até o ponto em que sua frágil consciência aguentava, a autodestruição do bêbado.
Após infinitas rodadas, Jesus, enfim, sentia-se livre de qualquer pudor. Olhou novamente por cima do ombro direito, fez que sim com a cabeça para alguém, e levantou-se, cambaleante. Soltou duas notas exageradas sobre a mesa, as quais o garçom pegou sem titubear, e deu o primeiro passo, trôpego e hesitante, rumo ao ponto em que seu olhar havia se prendido a noite toda.
Sozinho em uma mesa, bebendo lenta e prazerosamente em um canto confortável do bar, o rapaz sorri para Jesus:
- Senta. Eu tava te esperando...”
Após um interminável momento, o Capitão Jesus levantou-se, subitamente decidido.
- Tu tens razão. Que Deus me perdoe, mas é muita falsidade viver uma vida de mentira... – falou o grande Capitão, sem ao menos erguer os olhos. – É hora de botar um ponto final nessa história deprimente e patética. – Após um novo instante de reflexão, o Capitão levantou os olhos para o homem. – Tu quer mesmo fazer isso?
O outro, que ainda ria desvairadamente, ficou atônito, subitamente. Lágrimas começaram a rolar por seu rosto magro.
- Que se foda. Sim, eu quero.
- Então me espera.
O Capitão virou as costas e caminhou decidido até a porta de entrada, perto da qual alguns companheiros estavam escondidos, aguardando o momento de agir. O suicida havia exigido, horas antes, que todos desocupassem o andar, menos o Capitão.
- O que tá acontecendo, Capitão? O senhor tá muito estranho! – sussurrou o Sargento Prado, seu braço direito.
- Nada. Tá tudo sob controle. Tenho ele na palma da mão, mas vocês precisam sair. Vou fechar a porta.
- Mas por quê? Ele não sabe que a gente tá aqui...
- Sabe sim, ele viu vocês.
Os homens, então, contrariados, abandonaram seus esconderijos vagarosamente. Cabisbaixos e preocupados, passaram pela porta, a qual o Capitão fechou.
O Capitão Jesus, com o rosto firme e impassível, caminhou confiantemente rumo ao parapeito, enquanto retirava o capacete da Corporação e atirava-o para um lado qualquer. Aproximou-se da beirada e, pela primeira vez, olhou para baixo. A distância era assustadora até para ele, homem experiente que, devido à profissão, acostumara-se com grandes alturas. Olhou para o lado e percebeu que o outro homem o observava, ainda chorando. O Capitão, sério e firme, montou no parapeito e ouviu uma gritaria generalizada vindo lá de baixo. As pessoas não podiam compreender o que estava se passando.
- Se eu vou pular, tu vai comigo. Se tu vai pular, eu vou contigo. Nenhum de nós pode abandonar o outro. Não podemos correr o risco de desistir; temos de pular juntos. – afirmou o Capitão, sério e confiante como se estivesse comandando seus homens a entrar em um prédio em chamas. O outro sujeito, desesperado e confiando na convicção do bombeiro, concordou com a cabeça, enquanto as lágrimas seguiam despencando de seu rosto magro. – Eu vou chegar perto e pegar a tua mão. É assim que nós vamos acabar com essa brincadeira. Pra que nenhum dos dois perca a coragem e quebre nosso pacto.
O Capitão Jesus Batista Silva de Mello, bombeiro há 34 anos, homem há 55, sentou-se no parapeito e arrastou-se, vagarosamente, em direção ao outro, que olhava para baixo com os olhos encharcados, balançando a cabeça negativamente, desesperado. Sentaram-se, enfim, lado a lado e o Capitão pode observar o sol que se retirava, lentamente, do céu azulado; os raios ferindo-lhe os olhos. O quadro era perfeito. As nuvens, unidas formando um conjunto borrado de manchas no céu azul claro, alinhavam-se ao redor da grande estrela, poente, constituindo uma pintura mais perfeita do que qualquer homem jamais poderia traçar em uma folha de papel.
Após um momento, pegou a mão de seu companheiro e, pela primeira vez com doçura nos olhos, encarou-o fixamente.
- Vamos fechar os olhos. Apenas quando eu disser, tá?
O homem fez que sim com a cabeça e, após, sem poder conter-se, abraçou o Capitão, longamente. O Capitão, comovido, enxugou as lágrimas de seu companheiro.
- Essa é a nossa hora, meu eterno amigo. Fecha teus olhos – o homem fechou –, respira fundo – o homem respirou –, te prepara – o homem se preparou...
Ainda com os olhos abertos, o Capitão Jesus olhou mais uma vez para a bela paisagem que estava desenhada à sua frente.
- Realmente. Aqui em cima somos todos iguais...
O Capitão passou o braço por trás da cabeça de seu companheiro e saltou, enfim...
A salvação
Os dois desabaram no chão duro, mas a altura foi bem menor do que o suicida imaginava. Bateu a nuca contra o piso e logo sentiu que era agarrado com uma força extrema, brutal, apenas então abrindo os olhos. Quando o fez, percebeu que os bombeiros corriam desesperadamente em sua direção, e só então compreendeu: ali não era nem céu, nem inferno. Neste momento, desesperou-se. Não podia ser verdade!! Estava pronto para partir!! Tentou desvencilhar-se, mas o Capitão o agarrava insanamente, com sua força cavalar. Logo os dois braços viraram quatro, seis, doze, quatorze e concluiu que não mais poderia fugir. Sentiu vergonha e chorou, gritou, debateu-se, enquanto ouvia a multidão enlouquecida comemorar.
Enquanto era arrastado para a escadaria, o homem encarou o Capitão, que o olhava tristemente...
- Por que, Capitão, por que viver???
O Capitão, em silêncio, com a roupa amassada, os cabelos desgrenhados e o rosto cansado foi ficando para trás. Um sorriso desabrochou, acompanhado de uma lágrima. Ele ainda disse alguma coisa, mas o homem, devido ao intenso ruído da multidão, não conseguiu ouvir.