Dureza no olhar, sentimento concreto
Começa o fim de outro dia. O frio do concreto provoca em minha alma profunda tristeza. Parada frente à faixa de segurança, reparo no movimento dos carros, carruagens majestosas que, rápidas e imponentes, impõem-me respeito. Olho-as e desejo que enfim o semáforo impeça-lhes a passagem. À minha direita uma senhora alta de cabelos longos e presos faz-me pensar de como seria bela em sua juventude, doce e distante juventude. A mulher, estática e pensativa, espera a lotação. Olhos fixos no horizonte: talvez seu espírito adentrara à igreja e agora esteja a orar pelos pecados de sua alma. O semblante sério denuncia arrependimento, talvez seja esse o motivo do fervor daquele olhar. Crianças gritam e a distraem. Um leve fechar de olhos, uma lágrima a deslizar sobre sua face. Ela tenta distrair-se: olha as crianças até estas escaparem do alcance de seus olhos.
Desvio o olhar, penso ser ela o meu futuro e tenho medo. Agora sou eu quem busco a distração. Carros freiam, percebo o sinal vermelho. Volto os olhos para outra direção. Pessoas saem do mercado com suas sacolas e sapatos, desejos e ganâncias, mas não há tempo: os segundos passam e, antes deles, devo eu atravessar a rua. Sinto uma alegria infantil em pensar que agora são as belas carruagens de ferro que esperam o meu passar. Cansada, vou devagar, deliciando-me com o novo sentimento de meu ínfimo ser. Sinto-me vingada.
Não há pressa, apenas pensamentos. Fecho os olhos. Vozes, risos, sons de todos os tipos. Sinfonia urbana em meus ouvidos. A noite vem chegando e consumindo a luz do dia. Os bons sentimentos passam, a tristeza devora-me. Aos poucos, meu espírito mergulha-se na melancolia de mais uma noite fria de inverno. A caminho de casa, o vendo gélido balança meus cabelos num movimento infindável. Na rua, que aos poucos vai ficando deserta, apenas a solidão e a tristeza me fazem companhia. Outro dia findado, a esperança de sair da rotina novamente destruída. Casa, trabalho, casa. Apenas mais um dia igual a tantos outros de minha vida.
Distraída, sigo andando. Quase sem perceber chego à porta de meu edifício, hesito em entrar, olho ao redor: vejo apenas frias e altas paredes de concreto, nenhuma pessoa, nada. Sinto falta de calor humano. Giro a chave, entro. Sorriso seco ao vigia, pobre homem, sinto pena. Silêncio infernal. Pego o elevador, um, dois, três, estou em casa. Não acendo as luzes ao entrar, quero escuridão. Apenas a luz que vem do luar preenche minha sala. Doce ilusão aos meus olhos. Atiro os sapatos e a bolsa no sofá. Nenhum recado na secretária eletrônica. Sentimento de abandono. As cortinas balançam, sigo até a janela: é preciso fechá-la. Paro um instante: após anos luzes clareiam o apartamento frente ao meu. A curiosidade me consome, fixo o olhar à espera de um movimento. Num susto, afasto-me da janela.
Um homem, com um considerável porte físico e notável destreza, de pé, está a discutir com uma mulher, talvez sua amante. O que a princípio parecia ser uma simples discussão, torna-se algo violento, quase brutal. A cena me fascina. Ódio, imenso e incontrolável ódio. Sinto meu corpo paralisado. Vontade imensa de ser descoberta.
A mulher grita, chora, ajoelha-se. As palavras se confundem com as lágrimas. O homem, frio, continua com os olhos cheios de raiva, seu pensamento está imerso numa irracionalidade que parece não mais controlar. Um pedido de perdão, uma negação. Por um momento seus olhares se encontram. Um movimento, um tiro, um grito, silêncio. As luzes se apagam, a janela se fecha, o espetáculo acaba. Fecho os olhos, respiro fundo, sinto a adrenalina percorrer meu corpo, o vento acaricia minha face. Estranho sentimento de prazer em minha mente. Os olhos querem mais, a escuridão da noite não permite. Respiro fundo novamente, fecho a janela, sigo até a cozinha. Penso em comer. Não, melhor não. Sinto-me saciada. Acendo um cigarro, vou dormir.