Que Missa do Galo, que nada!
Pude, sim, entender a conversação que tive com uma coroa, em 2004, quando eu tinha dezessete anos e ela, trinta. Maria era a tia do Thiago, meu amigo de infância, e, também, a dona da casa onde nós íamos passar os próximos quatro dias, em Tiradentes. Maria, ou D. Maria, como inicialmente a chamei, transmitia a límpida impressão de uma santa, posto que cedera a casa e seus aposentos, sem parcimônia, a mim e a Thiago, pondo-se sempre à disposição e demonstrando um alto grau de solicitude. Me senti envergonhado logo à primeira vista: assim que cheguei, Maria se prontificou a preparar-nos um lanche e, após a refeição e lhe desejar uma boa noite, encontrei meu quarto de hóspede divinamente arrumado com um bilhete contendo os seguintes dizeres: “Meu quarto é o último do corredor. Qualquer coisa que precisar, não hesite em bater à porta. Maria.”.
O evento em questão seria o Axé Tiradentes, onde aconteceriam diversos shows de axé (micareta, sabe?) no centro da cidade histórica de Minas Gerais. As atividades iniciar-se-iam naquela mesma noite, contando com a presença de uma banda, até o momento desconhecida, chamada Babado Novo. A previsão para o início do show era à meia-noite e eu e Thiago já estávamos contando as horas: lembro que, logo após ler o bilhete de Maria, olhei para o relógio e apertei duas vezes o botão da esquerda para checar o cronômetro regressivo e ver que só faltavam duas horas, quarenta e três minutos e vinte, dezenove, dezoito segundos. Deixei minha mala num canto, encostei a porta e larguei-me sobre a macia cama do quarto de hospédes. E já estava na terceira música do show, todos indo ao delírio ao som do axé. Thiago já estava sem camisa, se confundindo com uma menina de uns poucos anos, talvez quinze. Eu pulava e junto vinha todo o saculejo da massa formada por pretos, pardos, mulatos, brancos, gays, lésbicas e todos as outras opções sexuais da modernidade. O palco estava meio distante, mas os telões não me deixavam escapar nenhum detalhe daquelas pernas grossas da cantora. A imagem ia subindo e a saia parecia encurtar. Disseram que ela já tinha parido dois, mas com aquela barriga era difícil de acreditar. A câmera subiu mais um pouco e deixou à vista a imagem de seios fartos, lindos. Agora, víamos o queixo e o rosto era reveleado. Num susto, percebo Maria com o microfone na mão e Thiago ao pé da cama me sacudindo pra me acordar.
- Acorda, maluco! Bora tomar um café pra agüentar a noite inteira! Troca de roupa logo, anda! Só não faça barulho, porque minha tia já tá dormindo.
Não tive como me levantar e não ficar com aquela visão da tia do Thiago na cabeça.
Ele fora descendo na frente, pude ouvir seus passos pelo ranger dos degraus. Olhei novamente o relógio e apertei o mesmo botão da esquerda, duas vezes: faltavam duas horas, trinta e quatro minutos e cinqüenta e cinco, cinqüenta e quatro, cinqüenta e três segundos. Não acreditava. Só tinham se passado oito minutos? Naquele instante passei a achar que era possível morrer por causa da ansiedade. Abri minha mala e tirei de lá a roupa que eu já havia escolhido para a ocasião havia meses: uma bermuda jeans, minha cueca preta da sorte e meus tênis nike. A camisa era o abadá, obviamente. Mas eu não ia me vestir sem antes tomar um bom banho. Precisava, no entanto, de uma toalha. Thiago me dissera que não precisava levar nada que não fossem vestes ou material de higiene pessoal. Desci para chamá-lo, mas foi só descer alguns degraus que o avistei na porta de casa conversando com uma menina de uns poucos anos. Preferi não incomodá-lo:se bem conheço Thiago, era capaz de brigar comigo se eu atrapalhasse uma conversa dele com uma garota. Voltei pra minha cama e já sabia da única opção que me restara. E essa opção estava no último quarto do corredor. Caminhei até a porta do santuário de Maria (sim, santuário! Já não disse que era uma santa?) e ergui a mão à frente, pronto para dar leves batidas na madeira escura que me separava dela. Hesitei, porém. Eu sabia que ela dissera que não havia problema em bater à sua porta, mas achei abuso. Pensei no que fazer. Bom, ela não tinha ido se deitar há muito tempo. Resolvi bater bem de leve, mas antes ensaiei na parede ao lado. Foram duas batidas bem sutis e me vi pronto para a prova final. Cerrei os punhos, pus a mão à frente e eu estava quase dando socos no alvo rosto de Maria.
- Boa noite, Maria, eu disse, como quem fora apanhado em flagrante.
- Boa noite, Marcos. Você tá precisando de alguma coisa?
- É, eu ia chamar a senhora, mas pensei que talvez pudesse acordá-la e...
- Ah, Marcos! Que bobagem! Achei que você entenderia a minha letra. E eu não sou nenhuma senhora! O que você quer de mim?
“Para falar a verdade, só um beijo de boa noite, por ora”.
- É que eu quero tomar um banho mas eu não tenho toalha. Será que você poderia me emprestar uma?
- Claro, claro! Como pude me esquecer? Venha. As toalhas ficam lá embaixo.
Fui seguindo Maria até a dispensa. Eu não havia reparado em sua roupa até o momento: ela vestia uma camisola amarela bem simples, parecendo um vestido de pano. Estava muito bonita. Media algo em torno de 1,60m, 1,65m e seu peso era bastante proporcional à sua altura; tinha cabelos bem longos e ondulados que quase lhe tocavam a cintura; seus olhos eram compridos e castanhos; os lábios grossos e bem desenhados. Era muito bonita.
- Esta serve? Ou você não gosta da cor laranja?
- Tá ótima, Maria. Obrigado.
- Você aceita um café?
- Seu sobrinho tinha me oferecido isso, mas se eu for depender dele, durmo esperando.
Lá foi Maria pra cozinha. Enquanto fazia o café, me perguntava se eu costumava viajar, se meus pais eram divorciados, se eu gostava de ler...
-Atualmente, tô lendo São Bernardo. Eu gosto muito de literatura nacional, sabe?
- Que legal! Eu também gosto. Tô lendo O Cortiço, ela respondeu.
- Eu já li. Muito maneiro.
Durante os dez minutos de conversa que se sucederam, discutimos alguns clássicos literários e também estilos musicais. Descobri que Maria era muito eclética. Seu gosto ia de blues a samba. Agora, ela já havia servido o café e estava de pé, do lado oposto da mesa, os cotovelos apoiados sobre a superfície desta e o rosto enfiado entre as mãos espalmadas, me contemplando a três palmos de distância.
- Tá gostoso?
- Uma delícia, respondi a ela, sinceramente. Pode ir deitar se quiser, Maria. Desculpa todo esse incômodo a essa hora.
- Incômodo nenhum! Fico todos os dias tão sozinha aqui nessa casa e quando tenho companhia não posso desfrutar? Que idéia!
Fiquei envergonhado e surpreso. Eu já não era um mero hóspede: Maria me elevara à posição de companhia.
Passados dois minutos de um silêncio que só era quebrado periodicamente com o barulho da colher batendo na xícara, Thiago despediu-se da garota, entrou na sala e me perguntou que horas eram.
- Dez e vinte, respondi.
- Vou tomar banho logo, então. Quero tirar uma soneca depois.
- Beleza.
Durante o diálogo breve entre eu e meu amigo, percebi que a santa não tirava os olhos de mim. Ao perceber isso, me senti poderoso e frágil ao mesmo tempo. Não me pergunte a razão.
- Tava ótimo, Maria. Muito obrigado.
- Se tem alguém aqui que precisa agradecer, esse alguém sou eu.
Maria estava tão próxima de mim que eu conseguia me ver nos grandes olhos dela. Ela era muito bonita. Certa hora, Maria passou a língua nos lábios para umedecê-los. Eu preferi não crer num ato sedutor. Deduzi que, como estava frio, sua boca deveria estar ressecada.
Continuamos conversando durante um bom tempo, sempre com modos e respeitando os limites ideológicos de cada um, até eu repetir a ação de apertar duas vezes o botão esquerdo do meu relógio e ver que faltavam apenas quarenta e dois minutos e quarenta e dois, quarenta e um, quarenta segundos.
Comecei a achar graça: agora, eu queria que o tempo passasse mais devagar. Eu estava gostando dos minutos gastos com a tia do Thiago. Ela parecia ter muita coisa interessante a me contar. Me encheu de histórias dizendo da vez que viajou pro Nordeste, de quando foi pra Moçambique, falando da época da juventude...Eram coisas divertidas de se ouvir. E o jeito como ela contava era muito excitante, quase como se revivesse os momentos passados. Ofereceu-me um vinho assim, de pronto. Não entendi nada. Mas não é porque não entendi que recusei: mal disse que sim e ela já fazia minha taça transbordar. Agora, depois de alguns pares de doses, falava com uma magia e uma desenvoltura impressionantes. Fora, aos poucos, abandonando seu aspecto imaculado e tornando-se mais humana, ao passo que ria, me dava tapas no ombro, chamava-me de “Marquinho”...vez ou outra ajeitava a manga da camisola que tendia a revelar-me sua nudez.
A conversa foi fluindo assim, divertida. Nós parecíamos grandes amigos que não se viam há tempos e estavam colocando a conversa em dia. Estava sentada na cadeira ao meu lado, com as mãos sobre a mesa, próximas às minhas. Eu já não me sentia tímido e a achava cada vez mais linda. E tinha a impressão que minha taça de vinho nunca esvaziava, por mais que eu bebesse. Olhei pro cronômetro, após apertar duas vezes o botão da esquerda e me surpreendi: faltavam treze minutos e trinta e um, trinta, vinte e nove segundos. Quando olhei para Maria para dizê-la que era melhor eu ir acordar Thiago, seu rosto estava a um palmo do meu, seus olhos inibindo-me novamente. Segundos de apreensão. O coração não sabia por onde iria sair. Eis que ela pergunta:
- O que você vai fazer agora? Acordar o Thiago?
Fico sem resposta.
- Hein, Marquinho?, ela insiste.
- Não é melhor?, respondo.
- Não. É melhor?
- Parece.
Sua respiração doce e com aroma de uva me desnorteia. Ela se aproxima. Eu bebi muito, eu acho. Preciso ter calma. Ela pode estar mais distante do que parece. Tudo muito rápido. Pisco e a imagino em cima do palco, dançando e apontando pra mim no meio da multidão. Abro os olhos, após alguns supostos segundos. Maria já não está mais lá. No lugar dela, Thiago me contempla ao pé da cama. Pergunto o que houve. Ele ri, constrangido.
- Você bebeu muito.
É... não sei se entendi realmente aquela conversação.