A JANELA da minha Vida...
Ao avô João, o Mestre dos Mestres:
A JANELA da minha Vida
A primeira janela que tive verdadeiramente, isto é, a que me prendeu a minha atenção, muito para além do seu mero sentido físico, habitual a qualquer janela de qualquer lugar, foi a janela da casa dos meus avós, provavelmente por me transportar para outros lugares que não os risíveis da paisagem de todos e todos os dias de uma cidade de província, mas que não deixa de ser uma cidade com as desvantagens que esta possui, por me transportar para os lugares da memória de infância.
Como fotografias de outros tempos vivas, revejo-me agora a olhar por essa janela a imaginar..., observando a eira, onde um velho cão fazia as vezes do gado ido quando a numerosa prole de filhos rumou até outras paragens, a procurar a independência, e assim deixando de fazer sentido a criação, para alimentar a dita prole.
O cão, herdeiro dos últimos afectos do derradeiro filho a partir para a próxima diáspora, era também o depositário das memórias de outros cães, afoitos na arte da caça, com que os homens entretinham uma certa época
”É um rafeiro dos bons! Para a caça não há melhor! Sai bem à família”
-Afiançava-me o meu avó, ante o meu ar duvidoso, que alimentava as dúvidas com as mãos que detectavam o pelo gasto e numerosa família de carraças. O ar decrépito do bicho de resto parecia dizer tudo... Até ao dia da minha primeira caçada, de arma na mão e rafeiro indolente a arrastar-se pela natureza, como quem espera uma ordem do dono para deixar a vida. Mas, mal a voz tonitruante, mas suave, do meu avô esgrimiu a ordem do sangue, o animal transfigurou-se, lançando-se mato adentro com uma velocidade a enganar a morte por mim anunciada. Após alguns minutos de bulício misterioso depois, ele apareceu, triunfante, com a cauda a abanar e, entre a boca (que palavra de honra, parecia exibir um sorriso de gozo) a ostentar o trivial coelho. Foi nesse dia que ganhei o respeito sagrado pelos talentos que se escondem por detrás de figuras pardacentas, e também foi nesse dia que aprendi não ser o depositário da tradição armada dos meus, pois, pouco depois da vitória do cão, fui incentivado a experimentar a pontaria em direcção ao local provável do novo jantar. A marca na pedra demasiado ao lado ainda lá está, ainda hoje, a provar a aselhice, memória disfarçada quando, por meu turno, levar as minhas criancinhas na peugada da tradição.
E também foi dessa janela que vi os meus primeiros nevões, a cobrir de branco os meus natais rurais. Se motivos havia para adorar aquela quinta, foram acrescidos pela perspectiva das férias geladas e das monumentais batalhas de neve, através das quais matava a saudade dos meus primos, ante o olhar embevecido dos avós, encantados por ver os descendentes da prole todos juntos, a reviverem a alegria desta. Como se teve o bom senso de manter a velha televisão da casa restrita a apenas alguns programas, os serões eram à antiga, entre o calor da lareira e as deliciosas palestras com que o avô fazia questão de nos obsequiar, recordando os seus tempos, na suavidade do fumo perfumado do seu cachimbo, enquanto olhava ora para nós, ora para um ponto imaginário à sua frente, onde estavam os nossos pais, algumas décadas atrás. Como os filhos só podiam vir no dia de Natal, ou em Abril a quinta durante quinze dias transformava-se numa espécie de campo de férias cheia dos nossos barulhos, para se esvair até às próximas férias na Páscoa.
E aquela janela, durante algum tempo pareceu ser de facto uma janela para o mundo, pelo menos para aquele. Ao inverno sucediam outras estações e outros atractivos, como o verão e o seu debelar, no reservatório de água aberto, no qual aprendi a nadar, e o qual parecia desafiar as horas de digestão, passadas, para não haver tentações, na sala, por detrás da janela. Noutros tempos o reservatório era o garante das culturas, guardando as águas das chuvas nas alturas húmidas, para durante os breves períodos de seca matar a sede à terra. Quando a ausência de braços limitou as culturas a um mero passatempo dos donos, e um furo o tornou ultrapassado; a água continuou a enche-lo, mas apenas para nosso prazer. Na altura não o sabia, pensava que ele estava activo o ano inteiro, até que, quando passei a frequentar o lugar menos assiduamente reparar no seu abandono. O mesmo tempo a fazer-me crescer e gozar as tontices da rápida adolescência na cidade, fazendo-me esquecer a deliciosa modorra campestre, fez mossa nos proprietários, tornando-os mais cansados, mais virados para a casa, e menos para o exterior. Parecia que a ausência dos netos os tinha apagado progressivamente, fazendo-os mergulhar inexoravelmente no ocaso da vida.
Tinha dezoito anos quando o avô morreu.
Lembro-me bem.
Embora o caixão estivesse na sala maior da quinta, foi da janela que senti mais a sua morte, porque da janela pude ver o enorme afluir de parentes mais ou menos distantes, a encher a eira com a prosperidade dos automóveis, (insuspeito parque de estacionamento até há algum tempo) tantos que muitos tiveram de ficar no exterior. O silêncio e os rostos mudos foram a imagem mais forte, melhor impressa, a superar as outras. Ainda me pediram, na qualidade de descendente mais velho, para segurar no caixão, juntamente com os meus pais e tios, mas eu recusei, até mesmo ir ao cemitério. Preferi despedir-me dele perdendo-o na janela.
Entretanto tinha descoberto outra janela.
Esta janela foi, tinha de o ser quase inevitavelmente, a da adolescência.
Por volta dos meus quinze anos, mudámos de bairro, dentro da cidade, mas demasiado longe para manter as amizades de infância.
O apartamento ficava num prédio de vários andares, num cruzamento. Por sorte a janela apanhava esse cruzamento, autêntico manancial de pequenas histórias, como vim de resto a perceber...
Durante o tempo em que os conhecidos do novo liceu se transformavam em amigos, e que por isso passava o tempo fora de aulas relativamente só, fui, pelos antecedentes, atraídos até ela, mas igualmente por outros motivos. Alguns anos antes, na altura das primeiras letras, descobri vários tipos de leituras; desde a trivial literatura infanto-juvenil, até às toneladas de “Asterix”, “Lucki-lucks”, “Tintins”, etc...deparei com a BD americana e a enorme série de super-heróis, de onde fixei alguns, apenas pela previsível colagem de modelos identificativos. Lentamente deixei as revistas, perdendo-as, estragando-as, ou apenas deixando de exigir a sua devolução quando as emprestava, limitando-me a ficar com aquelas que me diziam algo, muito para além do seu sentido ficcional. O herói que mais me agradava tinha uma janela...Por onde olhava perdido, antes da sua transformação em homem-morcego, por onde olhava, cada vez que estava no culminar do seu “momento humano”, transparecendo por ela todos os seus anseios, frustrações e revoltas, para, logo depois, se dirigir à mítica caverna, local onde se vestia a preceito para ajustar as contas “com o lado negro da sociedade”, e, de certa forma a a rectificar consoante o seu próprio sentido de justiça.
Os paralelismos ficavam pela janela “semi-panorámica”.
Antes de arranjar novos amigos, e até a primeira namorada chegar, refugiei-me por detrás da tal janela, ficando tardes inteiras a observar as diferentes rotinas de quem, inconscientemente passava pelo crivo curioso do meu olhar. Foi um ano e meio de “sentinela”, mas pareceu ser infinitamente mais. Com a ajuda de binóculos oferecidos com muitas dúvidas no natal (afinal se eu nem saia de casa, para que é que precisava daquilo...?), aprendi a conhecer a profundidade, e a ler os inúmeros rostos habituais, chegando ao ponto de criar amizades anónimas entre as pessoas que desfilavam pelo meu campo de visão com maior frequência. Elas, obviamente não sabiam, mas julgo que assim ia perder a piada toda...Que diria pois uma avozinha com a caniche, de velhice parecida, que todos os dias se esforçava para indicar ao bicho o sítio correcto onde ele deveria fazer as necessidades, ante a indiferença deste...(a fazer-me lembrar a diferente atitude do meu cão de férias...) se soubesse ser a sua rotina um dos melhores remédios para o meu tédio? O polícia, também ele esforçado, a tentar manter a ordem nesta rua tipicamente latina, logo absorta a algumas das mais elementares regras do trânsito? Os pedreiros que, no intervalo do trabalho, faziam sempre os mesmos piropos às miúdas da rua, pouco discretos, pois ás vezes até eu os ouvia? O drogadito do bairro, envolvido nos mesmos esquemas, e voluntariamente esquecido pelas autoridades, enquanto exigia mais ou menos de forma servil, ao lado dos parquímetros..., a moedinha da praxe pela providencial ajuda no estacionar da viatura? Ou mesmo as minhas colegas de turma, com as quais trocava as expressões suavemente idiotas a adolescência, para depois as observar com infinita maior profundidade do meu ninho, observando os seus gestos, as expressões envergonhadas ou atiradiças, cada vez que passavam “por um rapaz mais velho”, cuja idade lhes prometia menos baboseiras e resquício de experiência a faltar nos seus colegas borbulhentos?
Sentia a mesma solidão de Bruce Wayne na contemplação e antes da transformação em Batman, e invejava as sua saídas anonimamente épicas, esperando ansiosamente o dia da minha partida para o mundo que, de forma tão absorvente, explorava e observava. E tal como ele também partilhava um certo sentimento de revolta ante a sociedade e as suas desigualdades. Mas, enquanto o herói tinha razões sérias para censurar e tentar mudar Gothan, eu estava apenas a carpir a revolta juvenil de qualquer jovem da minha idade, a pôr demasiadas coisas em causa, tantas e tantas vezes sem motivo algum, julgando, na omnipotência da soberba janela, poder alterar de facto tudo, e fazendo pirraça a quem olhava os meus amuos como uma fase transitória. Sairia, sim, em grande, para conquistar aqueles que o meu típico egocentrismo punha por detrás da janela.
Mas a saída e uma certa acalmia deu-se, dai a pouco, de forma menos heróica, mas saborosamente mais saudosista, pela mão de uma das colegas por mim observadas, espantada por saber tanto sobre ela, como por exemplo os autocarros por si apanhados, e as horas em que ia para casa, consoante as gazetas feitas...Passando a ver esse mundo de fora, tornei-me seu actor, e tendo disfarçavel gozo, sabendo poder ser observado na minha liberdade por outros menos soltos...
Depois sai de casa, primeiro para trabalhar noutra cidade, e, de seguida para casar. Curiosamente não descobri nenhuma janela na casa que partilhei durante quase o resto da vida com a minha companheira. Só anos mais tarde, quando ela herdou um pequeno chalé, deliciosamente modesto, encostado a uma praia insípida e fria, mas de onde se tinha a vista soberba do mar a poucos metros de distância voltei à velha paixão, quase irresistivelmente.
Afinal, que poderia eu fazer perante a enorme superfície de vidro, com que o parente falecido mandou substituir a parte traseira da habitação? Na prática, e sem grandes floreados, não passava de uma espécie de marquise, mas ante os meus habituais antecedentes...a coisa seduziu-me de tal ordem, que, todos os feriados e fins-de-semana ou tempo disponível, eu arranjava forma e motivos de ir até ali. Embora não houvesse grande coisa para ver, a não ser esse mesmo mar e os pontuais barcos, deixei-me preencher pelo seu encanto típico, estranhando, pois até nem gostava muito do mar...Teria sido pela necessidade de evasão, ou porque, apenas e só isso, me sentia a envelhecer, deixando as actividades mais agitadas para os miúdos que, entretanto já preenchiam o meu espaço…?
Quando as asneiras acumuladas da grande indústria e desenvolvimento fizeram o mar invadir a costa e a minha janela, talvez por instinto voltei à primeira.
A quinta nunca fora vendida, tendo permanecido abandonada, pois faltavam ofertas de compra suficientemente generosas para convencer os herdeiros. E as memórias pareciam não ser caução suficiente para resgatar o velho solar...
Posso argumentar não ter tido melhor destino a dar às economias e alguns investimentos bem feitos, mas estaria a mentir...Aproximei-me da casa pelas memórias, por tudo quanto representava, mas também porque a maré da vida me quis devolver, no seu fim, ao local de onde, de certa forma, algo de mim começara.
E o tempo, de facto, parece, nalguns momentos, voltar para trás.
Com algumas alterações inevitavelmente tecnológicas, mantive o espírito e os serões de outros tempos, contando aos netos as minhas memórias, as dos meus pais, a dos pais destes e até onde as lendas da família se lembram ter existido gente com história, com o mesmo espírito ouvinte da minha infância, mas tentando transpô-lo para o novo papel de orador e patriarca.
Quando a catraiada abala para as cidades, regresso à janela e observo o pátio, revendo-me, revendo os meus, há muito falecidos, lembrando-me da despedida ao avô, e pensando, que um dia será um dos meus netos a olhar por ela, e a olhar assim para mim.
Fevereiro de 1999 e parcialmente alterado nos anos seguintes e até em 2011...
Nota a quem leia:
A história deste conto é parcialmente inventada, mas os sentimentos, esses são genuínos.
O meu Avô que eu saiba nunca caçou, nunca matou nada, pois era um homem soberbo que apreciou de uma forma serena a sua imensamente rica vida que lhe permitiu gerar descendência à altura do seu legado, do seu imenso legado...
O legado está pois assegurado Avô, tu e nós seremos de certa forma imortais
O Avô morreu no verão 1991, tinha eu 20 anos e eu jurei na sua campa ir sempre ser um homem feliz, por muitas amarguras que sofresse.
Passaram 20 anos e eu mantive o juramento