Solidão em uma noite insone
Reviro-me na cama e o sono não vem. Deitei-me as onze e agora são duas horas da manhã e ainda não consegui dormir. Ouço aqui do meu quarto, os bulícios das pessoas que caminham pelas ruas.
Ouço um veículo aproximando-se da esquina, um Funk estrala nos alto-falantes, é tão alto quanto o ronco que sai pelo escapamento estourado. O motorista acelera e arranca cantando os pneus. O barulho se torna menos estridente à medida que as marchas são colocadas. Em uma esquina qualquer seus pneus cantam novamente e os ruídos logo somem.
Na cozinha, meu freezer zumbe parecendo um grande besouro. Durante o dia este som é quase imperceptível, mas durante a noite é cem vezes mais alto do que deveria ser. Duas e quinze ele se desliga, pelo menos ele descansará por uns dez minutos, eu apenas me viro na cama novamente.
Por uma fresta na janela, entra um raio de luz vindo da rua, e que por ironia ilumina o relógio na parede, cujo ponteiro dos segundos bate ordenado, produzindo um barulhinho que aos poucos vai me irritando até me deixar estressado. Ele, como se fosse um tenor em um palco, se exibe, produzindo um som penetrante e contínuo. Tic-tac! Tic-tac! O ponteirinho vai deslizando sobre os números. Em minha cabeça são marteladas.
Em um churrasco na vizinhança, prossegue um jogo de truco, que começou as oito e que parece não ter mais fim. Seus jogadores bêbados riem e bagunçam sem parar.
-Truco! – alguém grita alto e confiante.
-Seis... Ladrão! – responde outro mais alto ainda.
O vento sopra lá fora, chacoalhando galhos e movimentando as folhas secas pelas ruas. Elas são arrastadas pelo asfalto áspero, fazendo o barulho que uma grosa faz na madeira oca. Outro veículo passa em alta velocidade. Gritos ecoam, cães latem e uivam.
Minha casa fica em uma esquina. Uma das ruas tem bastante movimento de veículos, é uma rua de comércio e tem vários bares e lanchonetes que trazem a juventude boêmia e barulhenta para cá. Em madrugadas de domingo, como hoje, a praça, duas quadras daqui, esta sempre abarrotada de gente e, a vozearia, geralmente vai até as quatro da madrugada. A outra rua, apesar de não ter movimento de veículos, é uma rua com pouca iluminação, onde drogados vem para fumar e os namorados para se ocultarem.
O freezer religa. Será mais cinco minutos sem ouvir com clareza nada lá de fora. Viro-me para os pés da cama, deste lado o colchão ainda conserva a rigidez de quando era novo. O sono não vem. Outros cães começam a latir, e assim se segue uma corrente que dura cerca de meia hora.
Três e quarenta marcam os ponteiros do relógio, e o barulho dos carros parece ter diminuído, o som vindo dos bares foi desligado e o jogo de truco acabou. O vento sopra, e quando passa pelos corredores entre as casas e muros, urra como um leão enjaulado.
O freezer religa, na maioria das vezes nem percebo que ele havia se desligado. Já passou da hora de desligar esta porcaria velha para sempre. Só me serve para fazer gelo e conservar alguns alimentos.
A cadela do vizinho começa a uivar. No cio atrai os cães de toda a parte para cá. Uivos infinitos, urros infernais e latidos demoníacos ecoam pela noite. Desgraçada. Desgraçado. Desgraçados todos. Não posso fazer nada.
Ouço gritos e ela aquieta-se, acho que alguém mais quer dormir. O silêncio começa... O freezer religa. Maldito! Porém, com ele eu posso. Levanto-me e vou até a cozinha para desligar este instrumento de percussão anormal, quando ouço murmúrios vindos da rua. Apuro meus ouvidos. A janela da minha cozinha fica a dois metros da rua. Estico-me, fico nas pontas dos pés e tento ver por cima do muro. Vejo um vulto estranho mexendo-se na escuridão. O vulto se divide ao meio e então consigo decifrá-lo; são duas pessoas que se abraçam encostados no tronco da árvore. A árvore que eu plantei. Minha árvore!
- Eu quero dormir! – grito. Eles correm assustados e eu volto para o meu purgatório. Está frio. O vento sopra lá fora agora cantando uma cantiga febril que dá medo. O freezer religa. Droga! Esqueci de desligá-lo.
O relógio mostra quatro horas quando ouço um cantar de galo, que é encoberto pelo barulho da Kombi do seu Zé Verdureiro chegando para montar sua barraca na feira aqui na rua ao lado.
-Dia – fala ele com sua voz acaipirada.
-Bom dia – responde alguém.
Agora, será mais uma hora de barulho. Outros veículos começam a chegar. E eu fico aqui deitado escutando e adivinhando tudo o que acontece lá fora. Caixas são arrastadas para todos os lados. Um cano de ferro cai e rola pela rua. Uma música sertaneja toca em um rádio qualquer. Uma criança chora, ou melhor, berra.
As pessoas que estavam no baile começam a passar pelas ruas. Sinto seus passos trôpegos e descompassados, e percebo suas conversas cansadas ou sem ânimo, é sempre tudo igual. Previsível.
Minutos depois reconheço a voz da filha do vizinho, que vem acompanhada de sua amiga de noitada. Ela sempre chega cantarolando as músicas que ouviu no baile. Ficam cerca de meia hora conversando no meu portão. Elas me atormentam.
-Você vai lá? – pergunta minha vizinha com sua voz rouca. A outra diz algo que não entendo.
-Lá no clube amanhã – explica a primeira, como se soubesse que eu não tinha entendido.
O freezer religa. Eu fico sem ouvir a resposta.
-Vai filha – digo baixinho – vão vocês duas. Vagabundas!
Minutos depois identifico suas vozes misturadas aos dos feirantes. O bate-papo se estende. Não sei como conseguem tanto assunto. Elas falam da vida de todo mundo, inclusive da minha. Dizem que sou estranho.
-Vocês é que são estranhas. Vão dormir! – sussurro cansado.
Olho para o relógio; cinco horas. Esta não é a hora de moças de famílias estarem na rua. Talvez, na semana que vem eu irei ao baile também, para que não me achem estranho.
A moça bate o portão de sua casa quando entra. Fala com a cadela que volta a latir irritada. Uma sirene soa, parece que é uma viatura em perseguição. Veículos passam correndo lá fora. Ás cinco e dez o sono chega, e outro galo canta ao longe. Logo depois, outro responde aqui perto na feira. E outro canta longe. São tantos que nem consigo contar. De onde eles vêm? Quem os cria? Não sei!
Ás cinco e vinte o movimento de fregueses começa na feira. Todos querem comprar as verduras e legumes bem fresquinhos, os pães e os doces caseiros mais bonitos. Sinto o cheiro dos pasteis fritando.
Fecho os olhos. Sonho que fui ao baile e que trouxe a vizinha para casa. Dançamos muito e agora ficamos conversando sob minha árvore. Ela sorri para mim.
-Olha, olha a abobrinha. Quem vai querer? – grita algum feirante.
Espreguiço-me, olho para o relógio, são onze e meia em ponto. Dormi cerca de seis horas e nem percebi a algazarra dos feirantes ou dos fregueses. Arrumo-me e saio para a rua. Vou até o fim da feira e volto sem encontrar nenhum amigo. Paro na barraca de pasteis e como um de carne, um de queijo e um de brigadeiro. Olho para minha casa e vejo a vizinha saindo no portão da casa ao lado. Ela parece estar descansada apesar de ter ido dormir tarde. Ela sorri e fala com as amigas. Provavelmente já estão prontas para irem ao clube.
Aproximo-me dela como quem não quer nada, digo oi.
-Oi – ela responde. E eu entro em casa feliz, mas sozinho