Copa América: o futebol que une os povos latinoamericanos
Um grupo de amigos viajava através das estradas da Argentina e do Uruguai. Após percorrerem pouco mais de 1.500 quilômetros, passando pelas vastas planícies onde só habita o gado que pasta, finalmente chegaram em Montevideo.
A cidade nem parece capital federal. Localizada no estuário do rio da Prata, onde suas águas doces se encontram com as do Oceano Atlântico, tem um ar de balneário e é repleta de particularidades. A descontração e o jeito descomplicado de viver do uruguaio transparecem em todo o lugar. A rambla, calçadão que beira a costa, de mais de 20 quilômetros de extensão e que liga a parte nova à antiga da cidade, é suscetível à influência das marés. Em determinadas horas do dia, predominam as águas salobras do rio da Prata. Depois, na maré cheia, espraiam as águas do Oceano Atlântico, que muitas vezes lança a espuma branca das suas ondas na avenida por onde os carros trafegam. É aqui que se pode observar o dolce far niente do uruguaio. É nesse calçadão que tudo acontece. Amigos de velha data lançam seus anzóis na água e jogam conversa fora. A figura solitária passeia com o seu cão na areia da praia deixada pela maré baixa. O casal de velhinhos bebe tranquilamente o seu mate vendo a vida passar. Famílias inteiras dedicam-se ao simples prazer de se banhar na luz tênue do sol de inverno. Um navio aponta ao largo.
Considerada a capital administrativa do Mercosul devido à sua posição geográfica estratégica, próxima da Argentina e do Brasil, tem um histórico centro colonial, a Ciudad Vieja, demarcado por um antigo arco de entrada, a Puerta de La Ciudadela. Para além dos seus limites, uma cidade moderna se estende, com shoppings e prédios de arquitetura diferenciada.
Após um breve passeio pela cidade, o intrépido grupo de viajantes dirigiu-se ao Mercado Del Puerto, um dos lugares mais tradicionais de Montevideo, para experimentar a famosa carne uruguaia, produto de exportação. Nas proximidades do porto, o lugar é repleto de restaurantes que servem a parrilada, uma combinação de diversas carnes e vísceras grelhadas.
Após alguns suculentos bifes e muitos copos de tannat, o típico vinho uruguaio, a tarde foi caindo e as as ruas foram se esvaziando. Era dia de jogo na Copa América – Uruguai x Argentina. Não se via ninguém nas ruas, que se tornaram território exclusivo dos cães abandonados. Parecia final da Copa do Mundo. Os semáforos abriam e fechavam sem que nenhum carro passasse. Todos com os olhos pregados nas TVs. A vibração futebolística, entretanto, pairava no ar. Aqui e ali se ouvia o som abafado de exclamações humanas de ansiedade, motivação e regozijo. No final das contas, um saldo negativo para os argentinos, que foram eliminados. Festa uruguaia na Argentina.
O grupo de amigos, vibrando com a eliminação argentina, não esquentou assento. No dia seguinte, rumaram para a Argentina. Navegando em águas internacionais, atravessaram o Rio da Prata, de Buquebus, o ferry-boat que faz a travessia fluvial carregando veículos e passageiros. Viagem complicada e cheia de expectativas. O barco balançou violentamente, deixando várias pessoas mareadas, a ponto de terem que se sentar no chão para estabilizarem os seus pobres labirintos e tomar coca-cola para assentar o estômago. Como é que pode água de rio balançar tanto?
Além dessas condições adversas, o coração de muitos brasileiros viajava batendo em descompasso, apertado de tanta ansiedade. É que estava rolando novo jogo pela Copa América. Dessa vez, Brasil x Paraguai, pelas quartas-de-final. Amantes do futebol, nervosos, andavam de cá para lá, segurando-se para não cair no barco que adernava ora para um lado ora para o outro, na tentativa de obter notícias da evolução do jogo. Do radinho que mal pegava durante a travessia, só se ouvia o silêncio da ausência de gols.
Pisando em solo argentino, à caminho da esteira de bagagens, os angustiados brasileiros perguntavam aos transeuntes argentinos o resultado do jogo. Com sorriso irônico e ar de deboche, os hermanos deram o resultado fatal: a eliminação da seleção brasileira, num reles 0 x 0.
Teve muito brasileiro que achou que era mentira dos argentinos, mas finalmente a ficha caiu. O que se via era um desconsolo geral e um ar de consternação. Como podia uma seleção vencedora de cinco Copas do Mundo simplesmente perder quatro pênaltis?
Cabisbaixos, seguiram para o hotel situado no coração da capital portenha, em frente ao Obelisco, monumento erigido em comemoração aos 400 anos da fundação da cidade. O que muitos queriam era apenas sair à esmo pelas movimentadas avenidas 9 de Julio e Corrientes para tomar uma Quilmes, a famosa cerveza argentina.
E quem se encontrava aos pés do imponente monumento? Por ironia do destino, um grupo de paraguaios, no maior apitaço, comemorando a sua classificação, mesmo sem ter vencido ao menos um jogo.
Foi a derrocada final. A brasileirada descambou para a rua Lavalle, para afogar as suas mágoas em cervezas, malbecs ou qualquer coisa do tipo.
Foram parar numa casa de parrilla. Sentaram-se numa mesa comprida, uma mesa de brasileiros chorosos. O garçom argentino baixava as bebidas, num misto de solidariedade e desdém. Entre bifes de chorizo e empanadas, os copos esvaziavam-se e se enchiam em ritmo nonstop. A alegria brasileira começou a aparecer.
Do lado de lá do salão, um grupo masculino olhava admirado a improvisada festa brasileira. Um cachecol do Brasil, desses que se compra nas lojas de souvenir dos estádios de futebol do mundo inteiro, foi o ponto inicial para conversa entre os dois grupos.
Eram hondurenhos, fãs do futebol brasileiro, que viajaram para a Argentina para ver a seleção canarinho jogar. Pena que se deram mal diante do fatídico resultado do jogo. Tiveram que ir embora sem a tão esperada vitória brasileira, mas apreciaram o vinho, a carne, o tango e a afabilidade de nós, brasileiros. A festa se generalizou. Brasileiros, hondurenhos e até os desdenhosos garçons argentinos tiraram fotografias juntos e se abraçaram, solidários na cruel derrota.
Uruguaios, brasileiros, paraguaios, argentinos e hondurenhos, expoentes da América Latina, unidos e integrados em torno de uma só coisa: a bola de futebol. Lembrei-me do lendário discurso de Che Guevara, proferido quando ele ainda não passava de um rapaz, que só queria viajar pelo mundo na companhia do seu fiel amigo Alberto Granado: “Ainda que nós sejamos insignificantes demais para sermos porta-vozes de causa tão nobre, nós acreditamos, e essa jornada só tem servido para confirmar essa crença, que a divisão da América em nações instáveis e ilusórias é uma completa ficção. Somos uma raça mestiça com incontáveis similaridades etnográficas, desde o México até o Estreito de Magalhães.” *
Questões políticas à parte, a conclusão é uma só: como humanidade, somos todos um.
* Guevara, Ernesto Che, De moto pela América do Sul – diário de viagem, Sá Editora, São Paulo, 2001.