CACHAÇA NA CARA

Os seus pés inseguros de bêbado não se firmavam no chão pedregoso. Ele vinha cambaleando, para a esquerda, para a direita, sem rumo.

Era domingo. As pessoas iam e vinham da feira. Ao passarem por ele, olhavam-no com um ar de desprezo, asco. Aquela figura esquisita lutando por manter-se de pé não podia deixar de ser notada. Vestia uma camisa branca, manga comprida, suja de barro nos cotovelos. A gola desajeitada pendia torta. Uma calça azul, lama na barra.

No bolso da camisa, cigarros e fósforos eram vistos através do pano ordinário. Sapato roto. Sem meias.

Eram nove horas. O rebuliço da feira aumentava à medida que o sol esquentava. O bêbado ali, entre a feira e a igreja. Na mão trêmula a garrafa seca, vez em quando tentava sugar-lhe um gole. Os olhos vermelhos repudiavam o sol que já brilhava forte.

Naquela madrugada ele tinha entrado num bar. Queria vender um relógio.

— Quanto você quer nele? — Perguntou um baixinho mal-encarado que bebia cerveja.

— Cinco paus.

— Deixa ver aqui de perto.

Visto o tal relógio, o baixinho afinal ficou com ele.

Assim o outro conseguiu o dinheiro suficiente para embriagar-

se naquela madrugada. Não importa que o relógio valia três vezes mais. Dinheiro pra lá, garrafas pra cá. E saiu levando embaixo dos braços as duas amigas que o acompanhariam sem perguntas.

Na madrugada fria, deparava pessoas que vinham de festas. Passavam por ele indiferente. Ele estava só.

Sacou de uma das garrafas. Destampou-a com os dentes. Começou a esvaziá-la em goles longos que quase lhe tiravam o fôlego.

No fim da primeira garrafa, já os olhos turvaram-se e o juízo enfraqueceu. Vendo a primeira amiga vazia e, portanto, imprestável, berrou um palavrão e atirou-a contra o meio-fio. Abriu a outra companheira, também com os dentes. Esvaziou-a antes do amanhecer. Mas não a jogou fora. No seu delírio, julgava haver ainda um último gole.

A manhã achou-o estirado junto ao muro da igreja. Levantou-se ao ouvir o barulho da feira.

Ao se erguer, apoiava-se no muro com as mãos e as costas. Ainda assim, três vezes tentou três vezes caiu. Numa delas, o braço deslizou no cascalho e ficou ralado no cotovelo. O sangue escorreu-lhe até a mão onde se grudou feito cola entre os dedos.

Na quarta tentativa, com esforço extremo, ficou de pé.

O mundo girava ao seu redor e o movimento da feira causava-lhe profunda estranheza e medo.

A muito custo, andou alguns passos, tropeçando no vento. A garrafa ele a trazia na mão, segurando no gargalo. Novamente parou e, com uma expressão de idiota, olhou a cidade que incessantemente girava.

Perto dali, uns guris corriam atrás de uma bola:

— Ô pau-d’água, lá vem o vento. Cuidado!

— Não vá tropeçar no bafo, hein!

Tendo entendido vagamente que zombavam dele, quis responder alguma coisa. Mas a língua pesava-lhe dentro da boca. As idéias demoravam para se formar no juízo sonolento. Tudo que ele conseguiu foi um gesto obsceno na direção dos meninos, o quê provocou uma gargalhada geral no meio da gurizada.

O povo incessante passava por ele, coisa que o deixava confuso.

O juízo fraco não atinava com a razão de tamanho movimento. Os olhos raiados de sangue fitavam um ponto qualquer. Por que tantos gritos e pressa tanta e tamanha correria de sacolas?

Um casal que ia à feira, ao vê-lo à distância, tirou por longe dele, dando uma enorme volta, como se temesse que aquele farrapo humano que a custo se equilibrava pudesse lhe causar algum mal.

As pernas cambaleantes vergavam descontroladamente. E ele, tal qual um equilibrista na corda bamba, abria vez em quando os braços para não ir ao chão. Os passos eram lentos e sem rumo. A queda, iminente.

Na previsão do tombo inevitável, a gurizada acudiu de lá gritando:

— Ô, Ô, êpa, vai ser agora!

Em dado instante, sentiu faltar-lhe o chão sob os pés. Uma depressão do terreno. O bêbado rodopiou em busca do equilíbrio. Num ruído seco, desabou no chão pedregoso que o recebeu sem carinho. A garrafa espatifou-se, sangrando-lhe o braço num corte profundo. Um dos meninos, em grande algazarra, gritou de lá:

— Êta, mas que caminha macia!

O bêbado, fungando, ainda buscou forças para se erguer de novo. Porém não as tendo obtido conformou-se com o empoeirado leito e encolheu-se ali mesmo. A dor da ferida, que roubava algum sangue, não o impediu de adormecer sob o agradável sol das nove e meia, embora o chão ainda estivesse frio.

Avolumava-se o burburinho da feira, mas o bêbado nada via.

Achava ali estirado ao pé do muro, tão encolhido e sujo que parecia lixo. Quem passava por ali virava o rosto e cuspia. Era no chão que cuspiam, mas era nele. Ele estava só.

Aproximou-se dele um vira-latas. Desses que perambulam a esmo pela cidade. Não se sabe de onde vêm nem aonde vão. Desses a que se enxotam a pedradas e ninguém aparece para defendê-los. O vira-latas abandonou o lixo a que vasculhava e foi aonde estava o bêbado, que dormindo não o viu chegar.

O bicho farejou-lhe a boca e lambeu no braço o sangue que tinha escorrido. Mas logo voltou a seu lixo.

— Mãe, olha! Um morto! — Gritou um menino que passava seguro no braço pela mãe.

— Não está morto não, meu filho. É cachaceiro. Aquilo é cachaça. Anda, vamos passar logo, antes que ele acorde.

Puxado apressadamente pelo braço, o menino olhava para trás a fim de ver ainda o homem que não estava morto, mas era cachaceiro. Cachaceiro era a palavra que todos diziam ou tinham em mente para definir aquele sujeito que, estirado ao pé do muro, não via o dia passar nem a vida cumprir sua rotina. Era quase um insulto que atiravam sobre ele. Cachaceiro! O farrapo humano quedava-se ali, sujo, asqueroso e abandonado. O sol já o castigava impiedoso. Fazia brotar do corpo e da cara vermelha um suor grosso que o untava de um brilho repugnante.

Como fora ele parar ali? De onde viera? Qual a sua história?

Nome: Sebastião. Os camaradas do bar, galhofando, tinham-lhe dado o apelido de Tião Goela-de-fogo.

Tião tinha nascido muito longe dali. Numa cidadezinha tão pequena e longínqua que nem se via no mapa. Contava então 48 anos bem evidentes na cara sofrida. Tinha deixado a terra natal aconselhado por parentes. Disseram a ele: “ Lá na capital você vai viver com mais comodidade”.

Viera para a metrópole a fim de trabalhar, ganhar dinheiro e viver como gente. Trabalharia onde quer que fosse. Julgava ter forças para tanto, mas não as tinha.

À semelhança dos que com ele vieram, tinha-se empregado como ajudante na construção de um arranha-céu que tocava as nuvens. Fazer a massa, carregar tijolo que não tinha fim, alisar infinitas paredes, cortar ferros. A tudo fazia num ritmo alucinante sob os olhos atentos do encarregado severo.

Havia suportado aquela tortura fatigante por alguns anos, findos os quais fora posto na rua. Alegação: não dava conta do serviço. Na verdade, tinha chegado outra leva de Sebastiões que trabalhavam por quase nada. Assim, aquele Sebastião havia sido descartado.

Contudo, de alguma coisa lhe valera o emprego no arranha-céu. Aprendera, Deus sabe como, a lidar com cimento, tijolos, ferro. Sabia fazer brotar do chão uma casa. Dali em diante, o remédio fora passar a viver de biscates.

Morava num quarto de barraco na periferia. A família era então ele e a mulher. Não tinham filhos nem pretendiam ter por enquanto. Sempre esperando a vida melhorasse. Só então teriam filhos. Enquanto isso ia vivendo, resignado, como Deus queria e permitia.

Sonhava então um emprego fixo e poder estudar à noite.

Por esse tempo era moço e podia chegar ao curso secundário. Mas o tempo implacável fora-se passando e os projetos todos se desfaziam no vaivém dos anos. Os desejos iam-se arquivando na estante da vida. Sabia que os sonhos iam-se perdendo no ir e vir dos calendários. Não conseguia. Não tinha forças. Não tinha recursos. Simplesmente não conseguia realizá-los, por mais singelos e banais pudessem parecer.

Percebera tarde demais que a cidade grande não era o paraíso que lhe haviam pintado em sua terra.

O turbilhão da metrópole o havia devorado, a ele e a seus desejos, que eram tão singelos e de pouca monta. No mundo hostil de gigantescos, cinzentos prédios, Sebastião tinha-se transformado num insignificante número no meio da multidão. Foi então que Tião conhecera a inseparável amiga que depressa passou a conso-lá-lo: a garrafa.

No começo, não bebia muito, uma ou duas doses por dia.

Mas a pouco e pouco a nova companheira conseguira dominá-lo. E ele, sem dar pela coisa, transformara-se no que se chama por aí de cachaceiro.

Nos bicos que vez em quando arranjava, obtinha o minguado dinheirinho que o mantinha vivo. Cada vez mais precisado de tudo ou quase tudo.

Comia pouco, às vezes nada, e bebia muito, às vezes tudo. Seu corpo, em pouco tempo de garrafa, perdera a robustez. Ficara com o eterno aspecto de doente. Os olhos fundos, a cara ossuda. Os braços finos pendiam do corpo como as mangas de uma camisa posta a secar pendem do varal.

Trocara, por assim dizer, a mulher pela garrafa. A primeira, vendo-se preterida, foi-se, derrotada. A rival era por demais onipresente.

Nos últimos tempos, não era raro Tião ser achado estirado junto a um muro qualquer. Servir de diversão aos vira-latas e provocar asco nas pessoas.

Fora deste modo que Sebastião fizera jus à alcunha de Tião-Goela-de-fogo.

Eram sete horas da noite. Tião havia passado o dia inteiro ali ao pé do muro, como morto. Foi despertado por um chuvisco que lhe banhou a cara ossuda e umedeceu-lhe as roupas sujas.

Ergueu a cabeça num gesto de espanto. Olhou em redor. Viu pessoas bem vestidas que entravam e saíam da igreja. Envergonhado de estar ali daquele jeito, despenteado e asqueroso, Tião, à pressa, pôs-se de pé, sacudiu-se, penteou-se como pôde. Saiu beirando o muro, ansioso por sumir-se da vista daquela gente que o fuzilava com os olhos.

Alcançou enfim a solidão de uma rua mal iluminada.

Como quisesse ver que horas eram, buscou no braço o relógio. Vazio o lugar, recordou-se vagamente de que o vendera no bar a um sujeito desconfiado. Só então notou o rasgo que os pedaços da garrafa lhe fizeram no braço.

O sangue tinha secado e a ferida doía longe.

Porém doía-lhe insuportável outra ferida muito mais profunda, mais sangrenta, de um sangue mais grosso e mais vermelho.

A chaga realidade doía muito mais dentro que a do braço. Ele já não esperava nada do mundo nem das pessoas nem de si mesmo. E a vida era um peso além das suas forças e da sua débil vontade de viver.

A razão de haver-se tornado um bêbado só ele sabia. A realidade da sua vida amarga e vazia, um monstro contra o qual nada podia.

Só lhe restava a fuga, constante, infindável, desesperada.

Assim, Sebastião desde muito deliberara sujeitar-se a tudo. A madrugadas frias e solitárias em que perambulava a esmo pela cidade hostil. Ao desprezo e asco das pessoas, que passavam e cuspiam. Aos cacos de garrafa espatifando-se sob o seu ventre e rasgando-o numa explosão de sangue. Às estrepolias da gurizada, xingando-o ou derrubando-o com uma rasteira ou pedaço de pau metido no vão das pernas. À sujeira fedida das suas roupas miseráveis, que não o protegiam do frio nas madrugadas bêbadas.

Ele se sujeitaria a tudo isso e a muitas outras humilhações, que lhe impusesse o seu destino de bêbado.

Já se habituara a elas todas e as enfrentava como coisas naturais. Não tinha dúvida, suportaria resignado as mais degradantes situações a que a embriaguez o conduzisse.

O diabo era que para livrar-se daquela perseguidora implacável Tião a cada dia precisava de maiores e maiores quantidades de bebida. E por isso vez por outra era forçado a vender algo de seu quase de graça.

Importava-lhe apenas obter uns míseros trocados que logo eram transformados em garrafas cheias.

Assim, tinha ficado sem o relógio.

Aquele domingo inteiro, deitado ao pé de um muro de igreja, ele o havia perdido? Cuidava que não. Permanecera ali, é certo, imundo e esquecido de todos. Mas ao menos enquanto tinha estado embriagado e delirante não via nem sentia diante de si o incalculável vazio da existência num mundo que o desprezava e ele ao mundo.

A cada dia passado, julgava-o ganho na direção da morte, que a tudo reduz e iguala. Que lhe importava o resto? Tinha vencido mais uma batalha contra a realidade atroz, cujos soldados eram os dias, as semanas, os anos intermináveis e vazios como garrafas depois do Natal. Vencera, e com que sacrifício, e com quanto sangue e quanta alma, vencera mais aquela batalha.

Mas quantas outras e quão ferozes ainda viriam desafiá-lo e matá-lo aos poucos? Nem ousava calculá-las. Tampouco supô-las findas. Apenas aguardava-as como o soldado que espera o inimigo numeroso e repentino.

No entanto, a embriaguez amiga tinha passado.

Eram oito horas daquela noite de domingo. Uma noite igual às outras.

Numa esquina escura, Sebastião deparou mais uma vez com sua adversária. Ela estava cruelmente tranquila. Olhou-o com uns olhos de mofa. Ela estava em toda parte: no ar, na rua, no modo do vento soprar e até no abandono de uma praça. Ela estava em toda parte.

Ele a viu como sempre via. Primeiro um arrepio no corpo inteiro. Depois o pavor de saber que pouco ou nada podia contra ela. Apressou o passo, mas foi inútil. Ela estava sempre ao seu lado. Tião entrou em seu barraco. Não comeu nada. Banhou-se à pressa e vestiu outra roupa.

Havia uma semana que ele não biscateava. Dinheiro, tinha nenhum no bolso. Que faria então para fugir da inimiga? Ela já lhe batia a porta. Já entrava pelas brechas do barraco. Já caía sobre ele na forma daquela luz amarela, opressiva que o iluminava mal. Que faria então?

Algo definitivo sobrevoou-lhe as ideias.

Ah! Tão bom seria morrer embriagado! A morte lhe chegaria como num sonho confuso, misturada aos delírios mais inocentes e loucos. Chegaria suave e imperceptível feita o badalar de um sino numa igreja distante. Morreria como quem morre sem saber que morre. Ah, tão bom seria morrer embriagado!

Pensou em apressar aquilo tudo. Mas foi ideia ligeira e sem força. Como sempre, sobrou-lhe a opção da fuga, a fuga bêbada e trôpega. Mas como? Como, se o bolso dele estava a zero?

Restava-lhe ainda o rádio, comprado em longas prestações. O rádio estava sobre a mesa. Ali, parado, imóvel, silencioso, como a observar a angústia de seu dono. Sebastião avistou-o como se encontrasse um tesouro valioso. Olhou para ele com uns olhos maus e, como se já delirasse, passou a confundir-lhe a imagem com a de uma garrafa. Os olhos sôfregos viam ora o rádio, ora a garrafa cheia que refletia a luz como se verdadeira fosse.

Resoluto, Sebastião partiu para o rádio. E já quase podia sentir o cheiro inebriante da bebida. Já quase podia ver abertas as portas do seu cárcere. A chave aquele rádio, transformado em garrafa, em delírio.

Pegou-o com violência. Meteu-o num saco vazio de arroz e ganhou a rua, direção do bar.

— Ah! Tão bom seria morrer embriagado. — Murmurava ele, dizendo a si mesmo. Queria dizê-lo ao mundo, pedido de ajuda. Mas sabia que ninguém o ajudaria. Ninguém podia ajudá-lo. Sabia que estava só.

Passo a passo, seguia-o aquele desejo de morrer. E fazê-lo com o auxílio de Tião Goela-de-fogo.

E lá ia ele, com o embrulho na mão, resmungando:

— Ah, tão bom seria...

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Mark Scoat
Enviado por Mark Scoat em 01/08/2011
Reeditado em 03/09/2011
Código do texto: T3133347
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