Amargo Vinho Carmim

Olhava fixo para frente, o pensamento longe, via as janelas do prédio ao lado, distante apenas a poucos metros do seu. No ouvido fones transmitiam aquele CD que adorava, Pink Floyd, ....”would you like to see...” dizia a música, e ele continuava a olhar para frente, para o prédio vizinho. Ao seu lado, na sala, seus olhos viam luzes piscando no pinheirinho de Natal que havia montado para a alegria de sua filhinha.

“Crazy!! Boys... .... to be crazy... ... you´re little shit....” continuava a música. Não, não estava louco, apenas olhava, e via o novo casal de moradores do apartamento ao lado. Jovens, felizes, a menina dançava, fazia movimentos perdidos no ar, e de repente, ao olhar para frente viu que estava sendo observada e, meio sem jeito, saiu do alcance do olhar indiscreto. Estranho como as pessoas têm vergonha de demostrar sua alegria, seus sentimentos, estranho como se importam tanto como o que irão pensar.

Ele, ainda absorto, observava as janelas, as luzes do pinheirinho, o som, e sorria, rindo da vergonha da alegria, rindo porque parecia já saber como seria seu futuro, rindo de felicidade pela lembrança de sua esposa, de sua filha e pelo bebê que estava por vir. Riso facilitado é claro, pela terceira taça de vinho que tomava, um Carmenère Chileno, honesto como todos os vinhos Chilenos, e pela música, e pelo vento, adorável vento de verão, que refrescava aquela noite quente.

O casal agora se preparava para uma noite de amor. Ele sabia pois, apesar d'eles terem fechado as cortinas para o olhar indiscreto, era fácil verificar pela pequena janela do banheiro, luzes acesas e dois vultos amantes tirando o suor do dia para logo, juntos, suar à noite.

No apartamento acima do casal, como todos os dias fazia, sempre a mesma hora, como se fosse um relógio Britânico, lá estava fumando o Grandalhão, apelido que ele mesmo inventará para o vizinho, marido de uma coroa charmosa, que pouco aparecia, mas que alimentava fantasias maliciosas em sua mente, fantasias deliciosamente maliciosas.

Foi nesse momento, no exato momento em que o Grandalhão acabou o cigarro e entrou para o apartamento, no exato momento em que o vinho e a música acabaram, no exato momento do primeiro gozo do jovem casal, naquele piscar de olhos em que ele saia do seu mundo hipnótico e voltava ao mundo real, foi exatamente aí, nesse segundo, que tudo aconteceu; e que tudo se desfez.

O pinheiro continuava com suas luzes a piscar, as luzes dos apartamentos do prédio continuavam no seu campo de visão, mas a música, a música se transformara em um estrondo seco, um estampido, um tiro.

No início parecia que não era ali, que não era com ele, afinal tiros naquele lugar onde moravam eram comuns, aconteciam todos os dias. Mas não, ele sabia que aquele que aquele gosto adstringente do vinho nem de longe se comparava ao gosto que agora subia por sua garganta; que o sangue carmim que lhe escorria nada tinha de Chileno.

Na cama sua mulher dormia tranqüila, livre, sonhava no filho que estava para nascer. No sonho seu marido sorria e a abraçava, na sala seu marido agonizava, mas sorria.

Não estava mais na cadeira olhando o além e certeiro futuro; sentia agora o frio do piso gelado, o frio da morte. Nada mais via a não ser as luzes do pinheiro. Natal sorriu ele. E sorriu principalmente porque, tinha a absoluta certeza, uma certeza quase Divina, que aquele casal seria muito feliz e, sorria ele, após nove meses um lindo filho nasceria. Escuro, escuro, escuro....

Cem metros do pinheirinho, na rua, o garoto de 15 anos sorria, orgulhoso do seu primeiro assalto. Mostrava para o irmão mais velho aquela carteira, o relógio e o celular que conseguira. Não tinha sido fácil, o velho sentira o medo nos seus olhos e tentou resistir. Não teve jeito, ele sabia que tinha que usar a arma e usou. Mas não queria ferir ninguém e atirou para cima. Deu resultado, o velho passou tudo e se mandou.

Estava feliz, seria aceito na guangue do irmão, tinha grana e um relógio novo, e, pensava ele, não tinha ferido ninguém. Baixou seu boné, olhou para os prédios, apenas um grandalhão olhava da sacada, botou os fones no seu ouvido e, mesmo não sabendo inglês, escutou aquela música não comum para aquele bairro, mas que mesmo assim adorava. .... “Crazy !!!! .... ”

Lavoura
Enviado por Lavoura em 09/12/2006
Reeditado em 22/03/2017
Código do texto: T313271
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