MENTIRA QUE CONFORTA

- Bom dia seu Sales. Como o senhor está nessa manhã tão linda?

- Meu filho não se pergunta a um velho como ele está, se pergunta onde está doendo hoje?

- Mas o senhor está com o aspecto tão bom, a alegria em seu rosto diz que está tudo bem.

- Você já soube da novidade? Sabe quem veio ontem aqui?

- Não, ninguém me disse nada.

- Meu filho!

- Não diga! Como ele está?

- Ah! Está muito bem. Está tão bonito que se ele fosse solteiro e você fosse uma mulher, eu ia fazer o casamento de vocês dois.

- Que pena não é seu Sales. E também, eu já sou casado.

- A viagem fez muito bem a ele. Até engordou.

- Que bom que ele veio lhe visitar não é?

- E trouxe a mulher e o meu neto que tem o meu nome.

- Mas que maravilha seu Sales. Vamos levantar? Eu preciso trocar a roupa da cama. Hoje é dia de trocar.

- É que está tão quentinha...

- Mas aqui fora também está quente e o senhor tem que tomar banho e ficar na cadeira, sentado boa parte do dia. Lembra o que o médico disse? Se o senhor ficar deitado muito tempo, e não tomar banho, vai fazer escaras nas costas. Essas camas são muito quentes. Venha. Dê cá a mão. Isso! Ficou tonto? Sente aqui um pouquinho. Isso passa já. Eu vou abrir o chuveiro.

- Não. Espere um pouco. Quero que você veja a carta que minha filha mandou de Londres para mim. Meu filho trouxe ontem. Está escrita em inglês. Começa assim...

Dear dad... Olhe aí. Esse papel na mesinha...

- Que bom seu Sales... Pena eu não saber falar inglês, nem poderei ler... Ponto? Já dá para levantar?

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Seu Sales vivia no abrigo “O Bom Samaritano” desde quando, anos atrás, fora trazido pelo filho que nunca mais apareceu.

Mensalmente depositava na conta da instituição, parte da aposentadoria do pai, de quem era procurador, para as despesas normais de qualquer interno mais o valor dos remédios.

Inicialmente seu Sales esperava pelas visitas nos finais de semana, depois se convenceu de que ninguém viria e deixou de mudar a roupa, mergulhado na solidão foi imaginando as visitas que gostaria de receber e criou os personagens e as situações que contava ao auxiliar de enfermagem encarregado de sua ala, como se realmente elas tivessem acontecido.

Como o papel em branco, que ele dizia ser carta da filha, imaginária, que viria de Londres para levá-lo para conhecer a rainha.

Como o neto que nunca nascera, mas que tinha o seu nome.

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- Pronto seu Sales. Vamos vestir esse agasalho para ir tomar café e depois sentar no jardim para tomar banho de sol.

- Eu quero botar aquele perfume... Como é o nome? Aquele que meu filho trouxe semana passada.

- Este aqui?

- Sim, este mesmo. Você é um rapaz esperto Anselmo. Vou mandar meu filho comprar um presente para você.

- Não precisa seu Sales.

Dizendo isso o atendente pegou o frasco, vazio, em cima da mesa de cabeceira, abriu e passou o dedo supostamente molhado no pescoço rugoso do velho que lhe sorriu em agradecimento.

- Vamos. O senhor precisa comer logo antes que seu filho chegue para levá-lo para visitar sua irmã.

- É mesmo. Eu tinha esquecido. Hoje é o aniversário dela. Cabeça de velho é uma porcaria mesmo... Espero que meu filho não tenha se esquecido de comprar o presente para ela que eu encomendei...

E Anselmo, segurando seu Sales pelo braço, levou-o lentamente, pelo corredor em direção ao refeitório, sabendo que seria mais um dia de espera inútil, pois a irmã, inexistente, era mais um personagem para compor a mentira que conforta, na esperança vã de ser, um dia, reconhecido como membro, vivo, da família que aquele homem, hoje mais um velho abandonado, ajudara a formar.