Relato
Mesmo não me conhecendo, acham que podem me salvar. Não podem. Não há salvação daquilo que não foi condenado. Eu não sou condenado, não estou condenado. Estou vagando. Vago por que quero, também porque preciso. Preciso vagar para viver, para não sucumbir. Eu olho para o céu e sinto que não estou morto. Não vejo estrelas, mas sinto o vento que me assanha os cabelos e tenta levar para longe de mim parte do que sou: a parte negra da minha alma.
Já morei em uma casa, tive um quarto. Não era só meu, mas eu quem mandava nele. Lá não vivia. Sobrevivia com a pouca comida, a pouca conversa, a pouca amizade e nada de amor. Lá a mulher minha mãe me batia, me abraçava, me xingava. Me mandava a recados para receber seus amantes, me colocava como escudo quando o pai lhe batia, e me batia quando ela apanhava.
Eu aceitava, era ela quem me dava o que comer e vestir.
Já freqüentei a escola, maldita. Maldita porque nela eu era maldito, malvisto... mal-educado. Aprendi pouca coisa: junto as letras e vejo palavras que muitas me são desconhecidas. O que melhor aprendi é que aqui alguns são escolhidos para mandar, outros para serem mandados. Eu não aceitava ser mandado. Todos os dias, sentia vontade de me mandar dali. Mas eles davam comida, eles me prendiam. Tenho cinquenta quilos. Consegui fazer uns bicos, vivo de bicos. Saí da escola, finalmente. Hoje, se voltasse pra escola, se ainda quisessem mandar em mim, hoje eu mataria. Antes não, que era novo e isso me escandalizava. Hoje, o sangue me esquenta um pouco e já me liberta.
Ele ainda está com a mão no meu peito. Ele ainda reza sobre a minha cabeça com uma das mãos enquanto coloca a bíblia contra o meu peito. Eu ainda fecho os olhos e sinto esse amargo na boca. Esse gosto de fel. Já bebi fel. Minha mãe dizia que era forte, que fazia bem. Me assistia a beber aquilo e a fechar a cara com nojo, raiva e coragem. Me assistia com um ar de piada séria. Sobe um azedume na minha goela quando lembro de minha mãe. O seu cheiro parecia café, café quentinho de manhã, já os beijos tinham gosto de fel: eu sentia vontade de receber, mas quando recebia tinha nojo. Estou de olhos fechados, recebo a benção, mas não penso nela, não sei o que é. As bênçãos de toda a minha vida foram: roupa, comida e pedra. Isso são bênçãos? Me fazem viver, me deixam viver.
Eu sempre vivi muito bem com roupa e comida. Vivia pela comida, e a roupa a tinha para não andar nu. Sempre tive vergonha de andar nu. Roupa e comida me bastavam. Dormia onde dava, o tempo que dava. É seguro dormir na rua quando você faz parte dela. E por algum motivo imbecil, curiosidade mesmo, provei da pedra. E por necessidade, provei de novo. Enquanto eu penso isso, já me sobe uma fissura imensa. Mas eu não dependo disso, não dependo dela. Uma vez cortei os pulsos e o sangue demorou pra vir. Pensei que não tinha mais sangue: o caco de vidro limpo não mão direita. Quando começou a vir, começou a arder, daí percebi que a dor está no sangue. Uma espécie de dor de vida, sei lá. Bebendo meu próprio sangue, me senti completo: tinha roupas, estava comendo de mim mesmo, estava me alimentando. Foi num desses dias que me internaram num abrigo, me engordaram e despejaram. A moça me disse que eu iria acabar me matando se ficasse tomando o próprio sangue. Sem a vida, o que eu sou? Eu a tenho e já não sou quase nada... Saí dessa de tomar o sangue, mais ainda sinto vontade.
- Não, véio. Num para de rezar ae... E, se para, me ensina. Eu não quero rezar. Só num quero morrê sozinho. Quero vê se Deus me recebe. Quero que o mundo pare de rodá ao menos por um dia. Os meus ólho estão assim, vivos, porque Deus quer. Você num conhece Deus, talvez ele nem exista, pra me deixar assim sem nada nem ninguém. Mas seu eu pudesse falar com ele, dizia: Pô, Deus, por que tanta demora, por que tanta ilusão?
Hylo Leal, maio de 2010.