FANTASMAS
Mais uma noite insone.
Os fantasmas do passado, tão sofrido e não compartilhado, mantidos presos dentro da alma, se fizeram presentes.
A vontade de rever tudo, de reviver emoções ainda tão vivas na memória e de experimentar novas sensações, fez a noite se escorrer por entre as horas em lenta agonia.
A dispneia e muitas vezes a tosse curta e seca o fizeram sentar na cama.
Não acendeu a pequena lâmpada do quebra luz. Não queria que as sombras do passado fossem espantadas pela luz. Eram essas sombras, agora, suas únicas companheiras.
Com elas, podia conversar sem sentir a vergonha de reconhecer quantas vezes se acovardara, quantas vezes se omitiu e até mesmo agiu como um canalha.
Com seus fantasmas não precisava exercer a hipocrisia, não precisava interpretar o papel ridículo que criara, e que acostumara a plateia, nem sempre interessada, com a sua medíocre atuação.
Apenas para cumprir o hábito de tantos anos, repetido mecanicamente, sem objetivo determinado, olhou para o relógio digital sobre a mesinha.
Quatro horas da madrugada.
Pensou alto resmungando de si para si que era hora de levantar-se. Para quê? O que havia para ser feito que não pudesse ser adiado para amanhã, ou para depois de amanhã, para a semana ou para o mês que vem. Não. Seria melhor deixar as realizações para o próximo ano.
Era a oportunidade de sair em férias. Férias da rotina da solidão em quem se transformara a sua vida. Acordar para dormir, dormir para acordar. Para ver os minutos se transformarem em horas, em dias, semanas, meses... Não. Era urgente levantar-se. Vestiu o moletom, o sapato tênis de última geração e saiu do quarto.
O restante da casa estava no escuro, tão escuro quanto seu quarto. Os móveis e utensílios, tudo tal como haviam estado nos últimos anos, cobertos por um cobertor grosso de poeira. Ele já nem lembrava mais o que havia depois da sala que se transformara na ligação do seu refúgio com o resto do mundo. Apenas passava por ela. Não a reconhecia mais como fazendo parte do seu dia a dia.
A lufada de ar gelado, mal penetrou em seu pulmão asmático. Não havia espaço lá dentro para o ar novo. Na tentativa de expelir o ar exaurido, forçou a tosse curta com que obrigava a musculatura comprimir os pulmões. Tentou inspirar com força, mas um acesso real de tosse fez o mundo rodar em sua frente.
A luz baça dos postes de iluminação pública não chegava para definir os contornos.
Ainda tossindo atravessou o pequeno jardim e abriu o portão, aonde um morador de rua, se encolhia sob o papelão grosso de uma caixa rasgada na tentativa de se proteger do vento frio e cortante.
Mal se olharam no breve momento da passagem. Eram desconhecidos anônimos que as circunstâncias uniram naquele breve momento. Nada mais.
Com passos vacilantes por causa da narcose, sentiu sob os pés o movimento provocado pela passagem do metrô no túnel cavado não se sabe a quantos metros de profundidade.
Para onde e fazer o quê ia toda aquela gente todos os dias, naquela hora e nas outras horas?
Alguns metros adiante, a entrada do metrô com uma placa grande que informava o nome da estação e numa menor o mapa dos arredores.
Sem se dar conta, desceu as escadas, dois, três lances e, depois da entrada ornada com flores artificiais de péssimo gosto, a gare. Na plataforma, semi deserta, bancos longos de talas de madeira pregadas em armação de ferro. Pessoas anônimas como o morador de rua que se instalara em seu portão, às vezes paradas às vezes caminhando rapidamente como se estivessem permanentemente atrasadas.
O relógio grande, pendurado por correntes, oscilante pelo deslocamento do ar provocado pelos trens, marcava cinco horas.
Ainda faltavam dezenove horas para mais aquele dia acabar. Outro trem parou e de suas portas recém abertas, saiu a multidão apressada.
Com movimento involuntário, entrou no vagão mais próximo e sentou na cadeira sem estofamento. O fim da linha seria daqui a vinte e duas estações. Mas ele poderia fazer conexão para qualquer outro ramal. Era só descer na terceira estação e mudar para outra linha de qualquer cor. Ele estava na linha azul. Na próxima estação, conexão com a linha amarela. Para onde é mesmo que iria a linha amarela? Consultou o mapa estampado na parede do vagão.
A linha amarela o levaria de volta ao passado, ao bairro em que vivera toda sua infância e adolescência, mas que impedido pelas circunstâncias nunca mais havia retornado. Como estariam seus antigos colegas? Ainda vivos? Quais modificações o passar dos anos impusera àquelas caras quase sempre sujas? E os cabelos, será que caíram ou como os seus, insistiam em permanecer desalinhados? E aqueles corpos femininos, esculturais que serviam de inspiração para a masturbação obrigatória antes dos banhos das tardes? Elas teriam, com certeza, engordado e o corpo demonstrava as alterações provocadas pela gravidez.
Talvez alguma tenha ficado solteira e como ele amargava a solidão, prima irmã da velhice.
Seria bom caminhar por aquelas ruas, suas antigas conhecidas.
Levado pela multidão desceu do trem e, instintivamente procurou as setas amarelas, pintadas no chão que o levariam para outro trem, de volta a um ponto qualquer no passado distante.
Já estava com vontade de desistir, quando o trem pintado com uma faixa amarela abriu as portas em sua frente. Sentou na última cadeira vaga e aguardou a voz metálica anunciar: última estação! Senhores passageiros desembarquem pelo lado esquerdo do trem.
Ele foi o último a sair do vagão ao mesmo tempo em que entrava o pessoal da limpeza.
Do lado de fora, quase oito horas da manhã e o sol preguiçoso começava a mostrar toda força dos seus primeiros raios. O ar morno da rua provocou novo acesso de tosse.
A bombinha com o bronco dilatador ficara no quarto, perdida no emaranhado dos lençóis.
Andou até a praça no centro da rua grande. Qual seria o nome novo dado a ela? Em sua infância sempre fora Rua Grande.
Sob o banco de granito, uma cadela no cio, tentava se esquivar dos muitos machos que a rodeavam. Dois mais afoitos entraram em luta corporal na disputa pela fêmea. Tudo igual.
Teve vontade de arranjar uma pedra para sacudir nos cães como fazia antigamente, mas a Rua Grande agora calçada, não dispunha mais de pedras soltas para serem atiradas nos brigões.
O sino da igreja matriz tocou anunciando qualquer coisa. Criou coragem e foi caminhando devagar pela calçada bem cuidada. Parou diante da igreja e os fantasmas, das janelas semi abertas, sorriram para ele.
Julgou ver Carlota, seu eterno amor, passar rápido por uma delas. Ilusão. Se alguém passou não era mais seu conhecido.
As pessoas começaram a sair da igreja. Do local em que se achava podia ver-lhe os rostos. Aquele talvez. Não. Não era ninguém conhecido.
Tolice essa de voltar. Voltar para quê?
Um grupo de idosos conversando na calçada. Ali deve ter algum conhecido, ou conhecido dos conhecidos. Como eram mesmo os nomes deles? Só lembrou os apelidos. Mas apelidos só permanecem os de família. Os da rua morrem com o passar do tempo, pois não fica bem para um desembargador, um reitor universitário, um bispo, uma juíza, uma médica diretora de hospital, serem chamados de Biga, Tolete, Oreia ou Burra Cega...
- O senhor está passando bem? Posso lhe ajudar?
- Ham! Oh! Sim, sim, eu, eu estou bem, obrigado... Não preciso de nada.
- É que eu lhe vi com o aspecto de quem está perdido...
- Realmente. Eu me perdi no tempo... Julguei que poderia resgatar algo do passado voltando aqui...
- E o senhor morou por aqui? Faz tempo que saiu? Talvez ainda tenha algum conhecido seu. Meu avô conhece todo mundo porque ele sempre morou aqui e casou com uma vizinha.
- Como é o nome do seu avô?
- Aristófanes Hidalgo e minha avó é Carlota. (um frio intenso percorreu todo corpo de Zé Maria).
- Não, eu não conheci ninguém com esses nomes.
- Venha comigo. Meu avô vai gostar de conhecer o senhor. Ele está escrevendo um livro sobre o bairro e as pessoas que moravam nele e eu penso que o senhor será de grande ajuda.
- Não minha filha, eu volto outro dia.
- Oh! Por favor, venha. A casa é aquela ali.
- Aquela casa era de seu Enéas e de dona Clotilde.
- Foram meus bisavós.
- Então você é neta de Frinfa.
- Como é que o senhor chama meu avô?
- Desculpe, mas o nome dele, quando menino na rua, era Frinfa. Deixe-me ir. Eu acho que não tenho direito de aparecer. Eu sou só um fantasma que veio para onde não devia... (novo acesso de tosse)
- Não fale assim. O senhor será muito bem vindo. Pode ter certeza.
- Não. Eu sei que não devo ir.
- Amália, quem é este senhor?
- É um amigo de infância de vovô.
- Que bom! Veio visitá-lo? (e para a filha) Como foi que você o encontrou?
- Eu estava saindo da igreja e achei que ele estivesse passando mal, porque estava olhando para a igreja com a fisionomia carregada, assim... Distante... Não sei.
- Eu preciso ir-me, com licença.
- Não, não e não. O senhor vai conosco. Papai vai ficar muito contente em lhe reencontrar. O senhor deve conhecer mamãe porque ela também nasceu e se criou aqui e (gritando para dentro de casa) papai, tem um seu conhecido aqui. Vamos, vamos entrando...
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- Carlota eu te amo tanto...
- Eu também te amo Zezinho, mas meus pais não permitem nosso namoro. Sua mãe não é casada, você nem sabe que é o seu pai. Eles querem que eu case com Frinfa.
- Nós podemos fugir e...
- Dar um desgosto desses a meus pais está completamente fora de meus planos.
- Então você não me ama.
- Amo. Você sabe que sim. Se não amasse não estaria contigo agora mesmo sabendo a bronca que vou levar quando voltar para casa.
- Aqui atrás da igreja ninguém nos vê.
- Mas nós temos que acabar o namoro. Hoje será a nossa noite de despedida.
- Então deixe fazer uma coisa que sempre desejei.
- Não. Pare com isso. Baixe minha saia. Você pode me deflorar.
- Não tem perigo. Cruze os pés. É só nas coxas... Um pouco mais...
- O que é isso escorrendo?
- Deixe eu limpar com o lenço.
- Estou tremendo de tanto prazer... Eu nunca senti isso... Meu deus como é bom...
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- Como é o nome do senhor? Papai deve lembrar porque ele tem a memória excelente...
- Eu sou José Maria, mas deixe-me ir...
- Papai, é seu José Maria. Seu colega de infância.
Aristófanes e Carlota chegaram à sala ao mesmo tempo, enquanto Zé Maria entrava pela porta da frente no ambiente finamente decorado, sendo puxado por Carla e Amália.
Num breve momento, que pareceu eterno aos colegas de infância, os três se encararam, estáticos, rostos vazios de emoção, sem palavras...
- Sente-se aqui seu Zé Maria. Lembra dele papai? Lembra mamãe?
O silêncio incômodo permaneceu por longo tempo e Zé Maria fez meia volta para sair...
- O que o trouxe aqui? (perguntou secamente o Dr. Aristófanes)
- Não sei. Nada talvez. Simplesmente sai de casa logo cedo e é para lá que estou voltando agora.
- Não Zezinho, senta um pouco. Desculpe a forma como agimos. Foi a surpresa em vê-lo. Disseram que você havia morrido e agora, você aí, vivo, felizmente... (disse Carlota)
- Talvez eu esteja morto mesmo e seja só o fantasma do passado. Eu preciso ir, com licença... (novo acesso de tosse)
- Sente-se e vamos conversar um pouco que seja. Afinal, passaram-se quarenta e cinco anos desde que você foi embora daqui. Vocês mudaram durante a noite, sem dizer para onde iam, sem falar com ninguém... Você deve ter muito que contar...
- Nada que valha a pena lembrar.
- Mas o que aconteceu com vocês?
- Minha mãe morreu no mês seguinte ao da mudança, eu vendi tudo e fui para São Paulo trabalhar. Já estou aposentado e a enfisema está me matando aos poucos nos últimos anos.
- E sua família? Mulher, filhos?
- Não tenho ninguém. A mulher que amei e que amo até hoje não quis casar comigo. Não casei, não tenho filhos, sou só.
A copeira trouxe a bandeja com café e Amália serviu ao estranho, ao avô, a avó e à mãe.
A mão trêmula de Zé Maria derramou o café na roupa sujando o estofado e o tapete.
- Desculpem. Eu não devia estar aqui...
- Não se preocupe senhor, a copeira limpará.
- Preciso ir. (dizendo isso, Zé Maria saiu apressado da sala e com a desenvoltura imprópria para seu estado de saúde, sumiu no poço do metrô)
- Vovô, o que aconteceu com esse homem para ele ter tanto receio do passado?
O Dr. Aristófanes ajustou os óculos e disse à neta.
- Ele era filho de uma mulher sem marido. Nunca soube quem foi o seu pai. Nossas famílias, minha e da sua avó, não queriam que tivéssemos amizade com ele, porque não ficava bem...
- Mas que coisa retrógrada vovô, esses conceitos, aliais preconceitos, já não valem mais nada.
- Engano seu minha filha, nossos pais estavam certíssimos. Veja a diferença entre nós e ele. Faça de conta que essa visita nunca aconteceu. Esqueça esse homem.
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Naquela noite, sem poder conciliar o sono, Carlota lembrou como se estivesse vivendo outra vez os fatos que a levaram ao casamento.
O arranjo foi conveniente para as duas famílias.
Aristófanes assumiria a responsabilidade pela gravidez de Carlota e receberia a fortuna que garantiu o luxo em que viviam até os dias atuais.
Mesmo sendo estéril e impotente, poderia apresentar Carla ao mundo, como sua filha, graças ao espermatozoide de Zé Maria que, valentemente, nadou coxa acima, nos fluidos vaginais de Carlota até fecundá-la naquela noite de prazer, incompleto, sem penetração, sem rompimento de hímen, testemunhado apenas pelo muro do fundo da igreja.
Aquele farrapo humano, de cabelo em desalinho, que estivera por breves instantes na sala de visitas, naquela manhã, jamais poderia imaginar que estivera diante da mulher que nunca o esquecera, tão pouco daquele momento de contato sexual, do enorme e único prazer que sentira em toda vida, que nunca deixara de amá-lo e que aquelas duas outras mulheres eram sua filha e sua neta...