CRIATURAS DA NOITE

Andando pela rua, já tarde da noite, ou melhor, eram as primeiras horas de um novo dia, já que seu relógio marcava meio noite e meia. No pulso, além do barato relógio, imitação de uma grife, uma pulseira e penduricalhos celestes. Gostava da noite, era notívaga como a coruja, esguia como a girafa e de olhar aterrorizante, como da cobra, nada falava, apenas olhava, inerte, como o leopardo pronto para dar o bote sobre a presa indefesa. Nessa imobilidade, jogava seu cigarro, comprado no camelô, ao chão e ia embora. Não vai de taxi, prefere ir a pé para, quem sabe, deparar-se com mais uma vítima.

Andou por mais de duas horas, viu aquelas estranhas figuras que povoam as noites, nem sempre silenciosas, da madrugada. Viu o andarilho sem teto esticado na calçada, mais adiante, outro a revirar o lixo em busca de algum alimento, viu o cafetão a esbofetear sua protegida por ter faturado pouco, viu, ainda, a esbofeteada ajoelhar e pedir que seu homem não a abandonasse. Não pôde evitar ver o policial corrupto liberar o traficante, e não se espantou ao ver o executivo dividir com outros a pedra alucinógena. Aquela noite não lhe pareceu diferente de tantas outras que por ali passava. A cidade se lhes mostrava, somente à noite, sem máscaras e sem etiquetas e a realidade não aceitava adaptações. Assim caminhou e contrariando outros tours já costumeiros, naquela noite não deparou com seu objetivo.

Já no interior da sua morada, faminta, pega aquele ser e o leva a boca e saboreia-o apaixonadamente. Tinha por hábito alimenta-se de guloseimas que instigam o desejo e a lascívia, embora, aos olhos da vizinhança era como uma freira. Diziam que fora educada num convento, mas disso só sabe de ouvir falar, porque a ela nunca perguntaram.

Saciada daquela boquinha, despe-se, e nua caminha até a banheira onde num diário registrará todo seu dia, item por item, pois acreditava que somente assim as pessoas teriam alguma história para contar. Porém lamentava que nunca preenchera uma página, pois sempre que se dispunha a escrever durante o banho, sempre dormia e o caderno afundava no fundo da banheira.

Acordada por uma explosão – que depois ficara sabendo causada pelo estouro do pneu do caminhão, em sobressalto levanta. Esquecida que dormira nua vai à varanda. Não percebe a multidão que passa apressada, os empregados da companhia de gás, bem abaixo da sua varanda, estão boquiabertos ao olharem para cima. Ela, meiga e inocente durante o dia, e uma fera mordaz à noite, não notara que olhavam para sua direção central, onde ao vivo e a cores, descortinava o paraíso, para alguns, e a luxúria, a volúpia para outros.

Da sua infância nada se sabia além que fora educada sob muita rigidez e que era filha de um antigo colaborador militar. Porém já havia cinco anos que morava sozinha e que seu sustento provinha de uma herança de família. Com os vizinhos trocava apenas saudações casuais, tudo para satisfazer as regras aprendidas quando criança, nada além do “bom dia, ou, boa tarde”.

E assim, como noutros, transcorreu o dia. E à noite, já arrumada, ela sai ao encontro dos seus prazeres.