E o entardecer tornou-se eterno

Eu ainda morava na minha cidade natal, quando fui procurado pela irmã de uma amiga, que vinha me pedir orientação para realizar um aborto. Ela havia engravidado de um homem casado, que se recusava assumir a paternidade. No seu rosto e nas suas atitudes, nada se via além da amargura e do desespero.

Usei todos os meios, para evitar que ela procurasse alguma pessoa fria e sem amor, que facilitasse aquela intenção. A cada conversa, eu dizia estar providenciando a ajuda, enquanto tentava conscientizá-la daquela atitude:

- Não somos perfeitos e podemos errar, por isto devemos evitar os erros que não poderemos reparar.

- Destruir uma vida é uma atitude sem retorno, e deixa para sempre a culpa e o remorso.

- Os piores problemas ainda podem ter uma solução, mas a morte é irreparável.

- Este pequeno ser que está se formando dentro do teu corpo, não tem culpa pela concepção.

- Muitas vezes o que antes nos pareceu um problema, depois podemos ver que foi uma dádiva.

Enquanto eu tentava ganhar tempo, temia que alguém destruísse aquela vida, e a minha esperança. Constantemente eu fazia contado para controlar a situação, e a cada conversa eu tentava persuadi-la:

- Tu já imaginaste que este feto que tu carregas pode ser uma menina?

- Imagine que um dia ela poderá ser a tua única companhia?

- Quando ela te abraçar, o mundo, os conceitos, e os preconceitos não mais te importarão.

- Quando tu a ouvires tentando pronunciar a palavra mamãe, o que os outros falam perderá o sentido.

Os dias passavam enquanto a vida se colocava ao meu lado, para cuidar da vida que começava.

Durante a gravidez eu me sentia responsável por aquela criança, como se fosse seu pai. Sempre que podia visitava a mãe, levando algum alimento próprio para gestantes. Tornei-me assim responsável pela formação daquele ser, que eu não havia gerado biologicamente, mas que se tornara filho dos meus princípios.

Na minha última visita pude ver a felicidade, tomando o lugar das preocupações.

Como quem já cumprira uma missão, eu me sentia mais tranqüilo e feliz, quando lhe disse:

- Logo tu vais dividir com ela o teu esmalte de unhas, e um dia ela vai ajudar a pintar os teus cabelos brancos.

No terceiro mês da gestação eu mudei da minha cidade, e nunca mais nos vimos e não tive notícias. Muitas vezes eu ficava recordando, e imaginando como fora o parto, e se havia nascido um menino, ou aquela menina que fora o personagem dos meus conselhos.

Passaram-se dois anos, quando voltei a minha terra. Naquela tarde de verão, numa rua no centro da cidade, eu descansava após o dia de trabalho. Como sempre contemplando a vida a minha volta, e meditando sobre o comportamento dos humanos, enquanto sorvia lentamente o meu mate.

Como se houvesse um motivo, eu desejava prolongar aquele entardecer.

Lá no fim da rua o sol descia sem pressa, como as aves que retornavam para as suas pousadas. Contra a luz do astro fulgente, percebi a silhueta de uma mulher, que pela mão trazia uma menina. Atravessando a rua ela entrou onde estava o caixa eletrônico de um banco, deixando a menina no lado de fora.

Quando vejo uma criança, logo sou atraído por ela, e parece que com elas acontece o mesmo, como amor a primeira vista. Quando olhei para aquela menina, ela começou me acenar, sorrir e jogar beijos, como se fossemos velhos amigos.

Quando pensei ir até lá ver de perto aquela bonequinha, a mulher chegou até ela. A menina me mostrou, e a mulher me olhou, sorriu e veio na minha direção. Antes que ela chegasse onde eu estava, pude reconhecê-la.

A primeira coisa que fiz foi perguntar-lhe:

- É ela?

- - Sim é ela!

Contendo a minha emoção, falei baixinho à mãe:

- Tu ainda desejas matá-la?

- - Acióly por que tu me perguntas isto agora?

- Porque agora é mais humano, ela já pode gritar pedindo socorro, mas quando ela estava no teu ventre era indefesa.

Emocionada a mãe me disse:

-- Acióly aquilo que tu falavas aconteceu.

-- Lembra que tu me dizias, que aquela criança que estava se formando dentro de mim, poderia ser uma menina?

-- Que um dia ela seria minha amiga e companheira? Que um dia eu dividiria com ela meu esmalte de unhas?

-- Pois agora ela é tudo isto, ela é tudo que eu tenho.

-- Que Deus te abençoe.

Já se passaram vários anos, e nunca mais eu vi aquela menina, cujo nome representa bem a nossa história.

Quem sabe eu a tenha visto sem reconhecê-la?

Quem sabe seja aquela mocinha, que me ofereceu o lugar no ônibus?

Quem sabe foi aquele rosto eu vi na multidão, e me pareceu tão especial?

O tempo e a vida passam, mas eu ainda posso ver aquele sorriso sincero, em cada criança que encontro pelo meu caminho.

Aquelas mãozinhas tão puras me acenando, se tornaram inesquecíveis, e os beijos que elas me ofertaram, eu os levarei comigo para sempre, como quem guarda uma flor, que nunca murcha nem perde o perfume.

Nunca eu poderia imaginar que aquela tarde de verão, que eu tentava alongar em meus devaneios, se tornaria eterna nas minhas lembranças.

“Eu vi a ave guardando os seus ovos, durante a chuva e o frio, enquanto os humanos matam no ventre a vida inocente e indefesa, então eu tive vergonha de pertencer a esta raça”.

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Mais triste, é ver mulheres que maculam o sagrado nome de "mãe".

Ninguém nasce marginal por ser filho de um marginal, isto é apenas desculpa para matar.

Mesmo que isto fosse verdade, quem poderia saber que a criança se assemelharia ao pai, ou a mãe?

Todos nascem iguais, nem mesmo o meio em que vivemos poderá nos moldar, se aprendermos a buscar a evolução.

A vida me mostrou a tristeza nas atitudes impensadas, e a beleza nos pequenos gestos, quando proporcionam o milagre da vida.

Um homem morreu na cruz, tentando explicar a palavra AMOR, mas os humanos não entenderem, e ainda usam o nome Dele, e as palavras Dele, para ganharem dinheiro, e semear fanatismos e intolerâncias.

Acioly Netto - www.guiadiscover.com

Acioly Netto
Enviado por Acioly Netto em 24/07/2011
Reeditado em 27/11/2013
Código do texto: T3114906
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