Os Vinte Por Cento - Última Parte
Após o juiz Leonel Celestino ter recobrado os sentidos e o grupo constatar que não tinha saída, deliberaram que o melhor seria a realização de uma marcha cívica para lentamente, mas, bem lentamente, mesmo, como salientou João Inocêncio, começar a alertar o povo sobre o plano diabólico e ainda não conhecido em sua totalidade, que ameaçava a cidade e suas instituições. Além disso, serviria como uma forma de conquistar o apoio da população contra o chantagista. Jairo Quadrão propôs chamarem o padre Alberto, idéia recusada por unanimidade. Pedrinho Júnior explicou que o caso era político e não religioso. Além disso, concordava Quadrão, o sacerdote apesar de ser um homem honesto, tinha fama de fofoqueiro e na certa ao ver o finado vivo, sairia correndo para a praça espalhando o milagre.
Com o que ninguém contava, era o mordomo recobrar os sentidos, roubar as chaves que João Bento deixara sobre a cômoda, fugir do aposento, trancar-se no quarto da filha do defunto e da janela começar a gritar para a multidão, que não conseguia ouvi-lo.
Jairo Quadrão pedia calma aos colegas em pânico, enquanto ligava para a rádio local, tentando contato com o diretor, que se mostrava muito abatido com a irreparável perda que o município e o país sofriam.
- Adamastor Barranca será sempre insubstituível – declarou o radialista aos prantos, antes de escutar o que o amigo tinha a lhe dizer.
- Pois não sabes o pior, Machadinho – falava baixo, como se fosse uma conversa sigilosa, restrita aos dois. – Imagina que por causa da morte do ilustríssimo deputado Barranca, o nosso querido Barranquinha; o Anselmo,... o mordomo da casa? Pois é, ele enlouqueceu.
Frente ao espanto do jornalista, prosseguiu:
- Para tu teres uma idéia do estado de demência do pobre homem, imagina que ele trocou aquele automóvel que ele tinha por um álbum de figurinhas da Copa de 74.
- Credo! – exclamou sem muita convicção.
- E ainda incompleto, faltando metade dos jogadores do Brasil, Iugoslávia e do Zaire.
- Nossa! – fingiu surpresa, não prestando muita atenção ao assunto por se lembrar que há poucos dias, havia feito uma troca semelhante, envolvendo um carro zero quilômetro.
- Não, o pior é que o louco anda dizendo que pode falar com os mortos.
- Tá doido mesmo – procurou concordar, ainda divagando sobre sua negociata.
- Diz que o Barranquinha está vivo e que fala com ele.
O nome do falecido despertou o jornalista de seu torpor, deixando-o tão furioso que jogou a xícara do café no chão.
- Mas isso é um deboche à memória política da nossa cidade!
- Pois é. Foi por isso que eu te liguei. Peço-te esse favor, em nome da nossa amizade com o inesquecível Adamastor, mas também pelas gloriosas tradições políticas do município. Interrompe a programação e dá a notícia, agora mesmo, dizendo que o homem está doido. Conta tudo o que eu te contei e pede para ninguém dar ouvidos a ele, nem chegar perto.
Quinze minutos depois, quando Anselmo conseguiu chegar ao telhado, a população gritava:
- Se atira! Se atira!
Alguns populares pediam calma e que ele só cometesse mais essa loucura, depois de trocar sua casa por uma coleção de chaveiros quebrados ou por uma série de calendários velhos, tudo registrado em cartório. O mordomo pedia silêncio. À medida que as pessoas tomavam conhecimento de sua suposta transação, aumentavam as propostas por novas trocas antes que ele desse cabo à vida.
Apesar de não entender todo aquele assédio, Anselmo insistia em conquistar a atenção do povo. Gesticulava, apontava para a casa sob seus pés, mas, só conseguia aumentar o coro dos que queriam sua morte e os que desejavam fazer uma última negociata, além do número de pedras e tijolos que passavam rente a sua cabeça e quase o faziam perder o equilíbrio ao tentar escapar delas.
Solucionado o problema do linguarudo, a marcha cívica teve início ali mesmo no quarto. Uns deram-se as mãos, outros entrelaçaram os braços e todos desceram as escadas cantando o hino de Tupilândia. Ao lado do morto, permaneceram apenas João Bento, o agente funerário e um vereador, que lia o jornal, e era o encarregado de impedir que o finado aparecesse na janela. O vereador Hipólito resolveu não participar do circo, como definiu a marcha, achando que a morte de Adamastor não passava de uma farsa, e foi para casa, não sem antes ter ouvido várias vezes seus colegas o chamarem de traidor.
Na sala, o cortejo ganhou a adesão dos presentes, que pensavam que os políticos estivessem fazendo uma última homenagem a Adamastor Barranca. O mesmo aconteceu na rua. Uma multidão incorporou-se ao grupo liderado pelo prefeito, o juiz, vereadores, o padre, que nessas ocasiões sempre gostava de ir à frente, além dos secretários municipais. Atrás vinham suas esposas, autoridades de outras cidades, suas primeiras damas e Benhur, cercado por diversas mulheres.
Deram três voltas na praça e no quarteirão, sempre entoando o hino da cidade, enquanto Adamastor Barranca gargalhava tão alto que quase era ouvido lá fora.
Seu Valfredo mantinha a calma. Calculava que para ele até seria bom que o morto aparecesse e acabasse com aquela palhaçada. A verdade vindo à tona faria com que a propina fosse desnecessária. Sua única dúvida era se o homem ia permanecer vivo ou morto. Consolava-se, baseado em sua experiência de mais de trinta anos no ramo, onde nunca vira ou tivesse conhecimento de um defunto que retornasse do além. “A alma talvez volte, mas o corpo a gente tem que enterrar. Só quem vai se ralar são os políticos sem-vergonhas dessa cidade”, concluía com entusiasmo.
Enquanto isso, no telhado, o mordomo sangrando pelas pedras que o atingiram, continuava suas denúncias:
- Ele está vivo! Ele está vivo! Não se deixem iludir! Não se deixem iludir!
Como resposta, toda vez que a marcha cívica passava à sua frente, recebia um “cala boca” do prefeito, pedidos para que descesse dali das autoridades do município e gestos obscenos do padre. Um grupo de garotos trouxe suas fundas e espingardas de pressão, dizendo que o maluco pensava que era um gavião.
Adamastor não se continha com o delírio das lideranças locais:
- Como são teatrais – falava em meio a risadas que começavam a contagiar o agente funerário, que fazia força para conter o riso. – Como gostam de se fazerem de vítimas. Manda a polícia baixar o pau nessa cambada. Eu quando era prefeito sempre fazia isso. Que complexo de mártir que essa corja tem. Principalmente os de esquerda. Já pensou que frustração para o Pedrinho Júnior se ele não apanhar das forças repressoras e serviçais da classe dominante, como ele mesmo diz? Que história ele vai contar para os filhos dele, se não for uma surra que levou da polícia? O rapaz não vive. Passa os dias inteiros trancado em casa lendo a vida nos livros.
Ao ver que o agente funerário concordava com suas opiniões e já demonstrava um enorme sorriso, pronto para se transformar numa aliada gargalhada, continuava:
- Eu quando era prefeito, o que mais gostava, além das maracutaias, era de mandar baixar o cacete em manifestante. Afinal de contas, que graça tem a gente assistir o jornal à noite na televisão e ver aquelas passeatas de protesto todas certinhas, parecendo procissão? Bom é a gente ver essa cambada levando porrada, correndo apavorada, dez policiais batendo num cara deitado no chão ou então um revoltado tocando fogo na rádio patrulha. Televisão é isso. Ação! Ação e nada mais – terminou sua exposição em meio a risos e engasgos.
Na cidade, a caminhada ganhava cada vez mais adeptos, o que deixava padre Alberto cheio de inveja e indignação, por constatar que nem as festas de São Pitolomeu atraiam tanta gente.
As primeiras reações iniciaram, quando a multidão rodeou a praça e o quarteirão do sobrado dos Barranca pelo décima quinta vez, sem um explicação sobre os objetivos da marcha. As críticas aumentaram no instante em que o cortejo deixou o centro, entrando por uma avenida rumo aos bairros e vilas, subindo e descendo ladeiras sob o forte calor. As mulheres reclamavam que os sapatos apertavam os pés, as crianças choravam que estavam cansadas e os homens suavam tanto que pareciam ter tomado um banho de chuva. Nenhum presidente vivo ou morto recebera tantas homenagens e caminhadas à toa, protestavam os mais indignados e nem nas procissões religiosas, o padre Alberto exigia tanto sacrifício de seus fiéis.
No momento em que o ato cívico passou pelo Bar Chopp do Fritz, cinco rapazes que estavam numa mesa ao ar livre, começaram a ironizar os políticos do pelotão da frente.
- Aonde as gurias vão de mãos dadas? Vão casar, suas bichas? Bichas! Bichas! Bichas!
- Alienados! Burgueses! Reacionários – revidava Pedrinho Júnior, enquanto que o prefeito pedia a um policial que fizesse o fuzilamento sumário dos inimigos das instituições democráticas de Tupilândia. Mas, era tanta gente descontente e cansada com inúmeras voltas e pernadas por nada, e sem voz de tanto cantar o maldito hino, que até o soldado já tinha se juntado aos protestos por uma explicação.
A marcha cívica atingiu seu momento crítico, quando o grupo de políticos entoava o hino cada vez mais alto, tentando encobrir os blocos do meio e detrás, que sambavam ao som de “Lá vem a noiva toda de branco...” sob a regência dos cinco rapazes do bar, que se juntaram à caminhada.
Após tantos protestos, não restou as lideranças locais outra alternativa, senão, reunir a população na praça em frente à carroceria de madeira de um caminhão, que serviu de palanque improvisado. Um megafone substituiu microfones e sistema de som.
Começaram os discursos, mas nenhum dos oradores se dispôs a mencionar ou se aproximar da real ameaça que pairava sobre a cidade e para alguns até do país, referindo-se à tragédia como forças ocultas e sobrenaturais. A prisão e internação do mordomo em um hospício fazia com que alguns políticos preferissem deixar tudo como estava.
Oraram o prefeito, o juiz e um que outro vereador. Padre Alberto quase fez a multidão entrar em transe profundo, ao relatar um histórico completo da vida do valoroso homem público que o município e a região perdiam. Elogiou Barranca pausadamente. A cada ponto ou vírgula, olhava para os lados em busca de aprovação, mas, só conseguia obter alguns bocejos, tanto na platéia como em cima do veículo, o que o fazia desejar mandar todos para o inferno.
Um vereador do partido conservador falou sobre a moral, a família e a devassidão que acometiam o planeta. Seu discurso era tão conhecido, que alguns se adiantavam e o pronunciavam antes de seu orador, como se fosse uma prece. Jairo Quadrão continuou com a enrolação, não se sabe se por esperteza ou desespero, alertando que a cidade poderia ser vítima de uma terrível invasão de discos voadores ou da erupção de um vulcão, descoberto há poucos minutos nas terras do doutor Fabrício, que ao tomar conhecimento da notícia, deixou o ato cívico e correu apavorado para sua fazenda, achando que aquilo era coisa de algum grupo extremista para desvalorizar sua propriedade.
Quadrão aos constatar que suas palavras não despertavam reações na platéia, chateado com centenas de olhares apalermados em sua direção e principalmente querendo ganhar tempo, na esperança de que alguém criasse coragem e falasse a verdade, leu um manual de instruções de um televisor, arrancando alguns aplausos de correligionários que pensavam que o vereador estava expondo o programa de seu partido.
Como ninguém entendia nada, a apatia era maior do que a normal nessas ocasiões e nem a turma do “muito bem” ousava dar seu apoio. A curiosidade em saber o porquê da reunião, a expectativa da surpresa que sempre ocorria nos comícios e o transporte gratuito para casa, patrocinado pelos partidos, faziam com que toda aquela gente não arredasse pé do centro.
Alheio a tudo, o prefeito, em conversa com São Pitolomeu, acrescentava às suas promessas a restauração da Igreja Matriz, da imagem do santo e a construção de uma nova creche com o nome do padroeiro lá na vila do Descampado, caso essa guilhotina do além não decepasse as cabeças das eméritas autoridades tupilandeses, principalmente a sua, de tantas tradições e lutas pelo bem estar e desenvolvimento da comunidade local. Falou com a convicção que o hábito de se referir ao seu passado e vida pública lhe dera, mesmo achando que talvez o santo não levasse muito a sério suas credenciais.
Vale lembrar que a família de João Inocêncio foi uma das fundadoras da cidade em mil setecentos e tanto. Desde então, manteve o prestígio e a influência política, seja pela troca constante de partido, apoiando eternamente os governistas ou pela exaustiva repetição das estórias das destacadas atuações de seus membros em diversas guerras e revoluções, como, em uma delas, quando a família enviou quinze escravos de confiança para lutar por seus ideais. Infelizmente, nenhum deles retornou, mas, a família foi condecorada por sua extrema bravura. João Inocêncio afirma ainda que uns parentes meio distantes desempenharam atividades heróicas nas Guerras da Coréia e Vietnã, além da Guerra nas Estrelas, esta piada da oposição que sempre lhe chamou de mentiroso.
O silêncio e a apatia só começaram a ser vencidos, quando os rapazes do bar lançaram a candidatura de Benhur à prefeitura. Durante o comício, o carioca foi obrigado a dar duas consultas extras, atrás de um veículo de lanches rápidos, conquistando mais votos. Logo as mulheres apoiaram a proposta e o nome do terapeuta era gritado pela multidão para o desespero das autoridades. Surgiu até uma faixa improvisada com os dizeres: “Benhur para Prefeito. Ele amansa a cobra e mostra o pau.” – clara alusão à dona Glória, que já tinha liberado geral e ameaçava fazer um topless no palanque em apoio ao seu guru.
A candidatura de uma última hora animou a praça, mas, faltava a estrela principal, o motivo pelo qual ninguém arredava pé do lugar. O vereador Pedrinho Júnior foi anunciado pelo locutor, como se fosse um astro de rock o que o deixou profundamente irritado.
Há tempos, que o parlamentar ateu, esquerdista, radical, extremista, ortodoxo e xarope vinha sofrendo de estranhos fenômenos, que para a população só faziam vir à tona suas verdadeiras intenções, além de mostrar toda a hipocrisia dos políticos do município.
Atordoado com tudo o que lhe revelavam, após seus pronunciamentos, Pedrinho Júnior dizia nas entrevistas não encontrar explicação para o fato, mas, em seu íntimo tinha certeza: era um espírito sacana que baixava sobre ele. Um espírito neoliberal e privatizante.
O vereador aproximou-se e pegou o megafone. A ovação e os aplausos brotaram intensos e ensurdecedores. Atendido em seu pedido de calma, iniciou seu discurso:
- Amigos e amigas. Companheiros e companheiras. Trabalhadores e trabalhadoras. Não vou falar superficialmente. Não vou me referir a forças ocultas e sobrenaturais... – aflição no palanque a hora da verdade parece ter chegado. Suspense entre os populares, que daqui a pouco ele se transforma.
- Vocês me conhecem... – uns balançaram a cabeça concordando, outros fizeram sinal de mais ou menos com as mãos. – Sabem que eu não sou homem de meias palavras. Por isso, vou dar nome aos bois.
A afirmação obrigou muitos homens no caminhão a passarem os dedos de leve sobre suas testas. Um até se escondeu.
- Burgueses, reacionários, agentes do capitalismo selvagem e internacional... – fez uma breve pausa para medir o efeito de suas palavras nos ouvintes.
- Representantes dos interesses dos grandes empresários e corporações, das multinacionais, do imperialismo que suga o sangue do nosso sofrido povo...
Um silêncio, não de respeito ou atenção, mas de expectativa e apreensão pairava sobre a praça, não se ouviam nem os passarinhos nas árvores. Muita gente de boca aberta admirando a cultura do jovem político, mesmo não entendendo nada do que ele dizia, achando que o parlamentar já havia trocado o grego pelo latim com passagem pelo Esperanto.
- Interesses que obrigam o país a permanecer num permanente e profundo estado de miséria...
Novamente o orador interrompeu o discurso. Lançou um olhar meio perdido para a multidão e recomeçou, calmamente:
- Eu fico pensando...Como é que pode existir um ser humano que ainda acredita em mim. – Alvoroço e desconfiança entre os colegas de legenda. Entusiasmo na platéia.
- Pessoas que trabalham, que levantam cedo para dar duro o dia inteiro... – surgem as primeiras palmas que empolgam o vereador. – Gente que segue o que eu digo, como se da minha boca saísse a verdade absoluta e incontestável. Eu que sempre vivi de mesada, nunca trabalhei. Eu que nunca cuidei de uma empresa, que nunca gerei empregos, fico criticando esses heróicos empresários locais e nacionais, que se tivessem um pingo de maldade em seus corações, mandavam fuzilar a mim e a esse bando de parasitas do meu e de todos os outros partidos. Estes sim, vivem às custas do sacrifício do povo. Estes sim, exploram o povo, são os urubus que se aproveitam da carniça da miséria para se promoverem – E apontou para os políticos, que faziam sinais desesperados, pedindo que alguém lhe tirasse o aparelho das mãos, se escondiam dos olhares de acusação do povo ou se protegiam das possíveis balas de espingarda de algum maluco, que resolvesse seguir à risca os delírios do esquerdista, que ninguém mais sabia de que lado estava.
Pedrinho Júnior continuava:
- Mas, eu quero aqui fazer justiça. Não vou generalizar. Peço uma salva de palmas ao vereador Hipólito. O único político honesto dessa cidade.
A multidão o atendeu, e após alguns instantes em silêncio, quando partidários tentaram discretamente lhe retirar o megafone, Pedrinho Junior continuou:
- Gente, peço a todos vocês, que de mãos dadas, façamos uma oração para que Deus ilumine, dê muita saúde e muitos anos de vida a esses valorosos empresários da indústria e do comércio e principalmente aos nossos queridos banqueiros... – emocionado, padre Alberto enxugava as lágrimas e tentava abraçar o convertido, que de repente ficou em silêncio, olhou o chão por alguns segundos, ergueu a cabeça, mirou o público e prosseguiu num tom violento, carregado de uma fúria demoníaca:
- E querem saber de uma coisa? Vocês têm que mais é se ralar!
A multidão entrou em delírio, batia palmas e pedia mais em meio aos “muito bem”, “apoiado” e vaias de deboche. Empolgado, o orador vociferava, cuspindo palavras:
- Esse povinho nojento que só pensa em futebol, carnaval e cachaça tem que mais é que comer capim, pegar ônibus e trem lotados, fedendo à asa de trezentos séculos. E sabem de uma coisa? Eu quero mais é me arrumar, eu quero mais é me dar bem! Vocês é que se ralem. Viva o capitalismo selvagem! Viva Wall Street! Viva a mais-valia! – alguns correligionários o empurravam e tentavam lhe tirar o megafone, outros procuravam lhe segurar, tentando calá-lo, enquanto que uns terceiros entravam em conflito com os seguranças, que não sabiam a quem defender. Há todo momento, o orador recebia chutes nas pernas, tapas na cabeça e cascudos deferidos de forma sorrateira, por membros da base aliada. O líder do partido, em prantos, via a vitória nas eleições municipais trocar de mãos a cada nova frase do possuído.
- A miséria de vocês é a inspiração de meus discursos, a matéria–prima de meu trabalho. Se vocês ficarem numa boa eu vou reclamar de que? Eu vou viver do que? Como que eu vou me eleger? Eu sou o sócio da miséria – deu uma risada sádica e metálica – eu sou o urubu que vai comer a carniça de vocês – e deu uma nova gargalhada tão grossa e alta que ecoou por todos os cantos da cidade, fazendo com que crianças chorassem e gritassem pelas mães, algumas idosas não esperassem mais pelo transporte gratuito e corressem assustadas para casa e muitos em cima do caminhão jurassem que era Satanás quem gozava de todos. O céu que estava azul e limpo num estalar de dedos foi tomado por uma escuridão, como se nunca o sol houvesse aparecido. Raios e trovões soavam tão alto que muitos tapavam os ouvidos com as mãos, enquanto que alguns mais medrosos fugiam a esmo, crentes que aquelas trevas eram o início do fim do mundo.
Mesmo assim, a maioria das pessoas na platéia ria e aplaudia as trapalhadas de dois vereadores desesperados, que tentavam retirar o aparelho de som de Pedrinho Júnior, enquanto o levavam para trás do palanque. Ao passar por Jairo Quadrão, o vereador recebeu uns tapinhas nas costas.
- Muito bem, muito bem. Belo discurso, que coragem. Eu gostaria de fazer o mesmo. De falar tudo isso para esse povinho nojento.
. . . . .
Após o comício, o prefeito, a Câmara Municipal e a família do defunto fizeram um comunicado informando que devido ao grande número de pessoas, que desejava prestar sua última homenagem ao deputado, as cerimônias ficavam adiadas por tempo indeterminado. No quarto, as negociações prosseguiam.
- Afinal, seu Valfredo, por que o senhor não cede e dá logo esses vinte por cento? – indagava o juiz.
- E por que não a prefeitura?
- Mas seu Valfredo. Imagine o escândalo que seria se a imprensa descobrisse que nós pagamos propina a um morto? – argumentava o prefeito.
- Não vejo escândalo nenhum.
- Como que não, homem?! – surpreendeu-se o juiz.
- Volta e meia aparece na televisão reportagens sobre órgãos públicos pagando pensões e salários milionários para funcionários fantasmas e defuntos. Horrível mesmo seria se a imprensa soubesse que eu dei comissão de vinte por cento dos meus serviços justamente ao homem que eu enterrei. Eu ia ficar com fama de otário no mundo inteiro. Antes conhecido como ladrão do que trouxa. E só o meu dinheiro não vai satisfazê-lo. A parte do orçamento municipal é bem maior. Além do mais, se ele abrir a boca e entregar vocês, eu não perco nada, talvez só o dinheiro do enterro. Já vocês...
Para as autoridades os argumentos do agente funerário eram mais que convincentes, tanto que Leonel Celestino propôs que se desse logo a propina para se livrarem o mais rápido possível daquele finado chato.
Sua proposta virou quase solução, não fossem os votos contrários do prefeito e seus secretários, todos com medo de uma futura taxação mundial de ladrões e otários.
- Ladrões, tudo bem. Agora, sermos conhecidos como trouxas e ainda mais por termos dado propina a um morto, realmente é demais... Imaginem: a gente rouba do povo e um morto nos rouba. – analisava João Inocêncio, obtendo a concordância de seus colegas de partido.
- Mas ninguém vai ficar sabendo de nada – disse um vereador.
- Como que não? Sacanas como são esses caras da oposição. No mínimo, depois deste episódio solucionado e eles com as cabeças a salvo, vão dar um monte de telefonemas anônimos para as redações de tudo quanto é jornal, rádio e televisão no mundo inteiro nos entregando - finalizou a discussão o prefeito.
Restava como última alternativa apelar à dona Candinha para que cedesse ao defunto sua parte na herança. Chamada ao quarto, a viúva foi rápida e intransigente. Não tinha dinheiro para gastar com bobagens. Acabara de pagar duas consultas com o famoso terapeuta Benhur, uma para ela e outra para a filha, que cancelara sua viagem a Paris.
Ninguém deu importância ao que a dona da casa falou. Tinham um problema muito maior para resolver. O caso Benhur, pensavam todos, seria solucionado depois. Nada que o pistoleiro Billy Tom não pudesse dar conta, afirmava o juiz. Se bem que, o prefeito não levasse muita fé nesse matador de aluguel, com nome de ator pornô ou preservativo.
Já recuperado da crise, mas extremamente desesperado, principalmente pelas críticas que recebia de alguns colegas, entre eles do prefeito, que o acusavam de ter feito lá na praça a introdução do juízo final, o vereador Pedrinho Júnior sugeriu:
- Vamos chamar um médium, um parapsicólogo ou sei lá o que.
A idéia seria votada, não fosse o morto chamar o vereador para uma conversa ao pé do ouvido.
- Olha Pedrinho – falou num tom paternal. – E isso tudo que eu ainda não falei nas tuas intenções de trocar de partido só porque o prefeito te prometeu que vencerias a concorrência para a instalação de uma lancheria lá na prefeitura, sendo o teu cunhado o teu testa-de-ferro no negócio.
- É?! E o senhor se esquece que nós estamos com uma união de partidos populares e democráticos no poder? E que podemos fazer uma devassa em todos os documentos da época em que o senhor era prefeito? Fazer uma varredura em sua casa a procura de provas? Quebrar seus sigilos bancário e telefônico? Enfim, achar todas as provas de suas falcatruas nesses anos todos? – respondeu ameaçador e vitorioso.
- E o senhor se esqueceu que eu já morri?
O vereador boquiaberto, de olhos arregalados e suor escorrendo pelo rosto, não sabia o que dizer. Melhor seria convencer de uma vez por todas a população de que a terceira e última Guerra Mundial havia começado.
. . . . .
E lá se foram eles de novo para a rua de braços estrelaçados, cantando o hino de Tupilândia. Só que desta vez não contaram com a adesão do pessoal do térreo, que já tinha ido embora, nem da população que havia se recolhido para ver a novela das oito, muito menos de Benhur que desenvolvia um trabalho energético com a esposa de um dos vereadores.
Os cinco rapazes do bar é que se juntaram ao grupo, não para entoar o hino, mas para orientar as autoridades que de tão nervosas e atrapalhadas não conseguiam tomar um rumo.
- Sempre reto! Sempre reto! – ordenava um.
- Vamos até Amazonas – gritava outro.
- Sigam para a capital e se entreguem na primeira delegacia – mandava um terceiro. Já os outros dois, sem mais paciência, queriam que trancassem todos aqueles chatos num vagão de carga que passava dali à meia hora com destino ao centro do país.
A Segunda Caminhada Cívica pela Integridade de Tupilândia, sem liderança, já que o quinteto retornou ao bar, ganhou a rodovia federal, juntando-se a um piquete de cavalarianos que fazia uma cavalgada pela integração das tribos da Polinésia na América do Sul.
Horas mais tarde, se não fosse um caminhão quase atropelar as autoridades, elas não teriam se dado conta de que haviam chegado ao povoado do Boqueirão, distante cinco quilômetros da cidade. A cavalgada seguiu seu rumo, enquanto que os membros da Segunda Marcha Cívica descansaram e timidamente iniciaram os discurso à meia dúzia de homens que bebiam num bar. Dez minutos de encheção de saco, como os freqüentadores do boteco definiram o falatório, fizeram com que os políticos recebessem um ultimato: ou bebiam quietinhos ou eram corridos à bala. Ninguém mais deu um suspiro, pelo menos em relação à situação dramática vivida pelo município.
Retornaram à cidade de madrugada. No caminho, passaram por um pequeno percalço. Foram assaltados. Mas, numa prova ímpar de civismo, a turma retornou só de cuecas, de braços dados e cantando o hino de Tupilândia, meio enrolado e com palavras pronunciadas pela metade, devido ao cansaço e aos tragos tomados lá no Boqueirão.
O único que não demonstrava sinais de fadiga e ainda permanecia vestido era o juiz Leonel Celestino. Nenhum dos assaltantes quis levar seu abrigo rosa brilhante com motivos florais, que ele colocara no povoado. Tomado por uma enorme alegria, abraçado a um colono e a um mecânico bêbados, que ele arrumara lá na bodega, rebolava e cantarolava o hino como se fosse o enredo de uma escola de samba.
Pedrinho Júnior, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, e que além da roupa perdera um relógio de ouro e um CD de um grupo de rock, comprado por um assessor na capital, completamente desnorteado, proclamava que na próxima semana, se ainda fosse vereador, apresentaria um projeto a favor da pena capital. Ressaltava que só não concordava com esse capital. Melhor seria pena comunitária ou sócio-eliminatória. Ao ser lembrado de que o assunto fugia da alçada do Legislativo Municipal, começou a planejar a criação de um esquadrão da morte. Reclamando que nunca havia sido assaltado, dava razão a Jairo Quadrão. Bandido bom é bandido morto – vociferava de minuto a minuto, sempre que lembrava o CD perdido.
Ao amanhecer, para sorte dos políticos, grande parte da população ainda dormia. Só cruzaram pelos rapazes do bar, que rumavam cambaleantes para suas residências e não pouparam as autoridades de comentários surpresos e maldosos.
- Ih, cara! A Segunda Caminha Cívica pela Integridade de Tupilândia acabou em bacanal lá no bordel da Magali e suas jovens de boa vontade!
Os integrantes do cortejo esqueceram a diplomacia, fazendo gestos e proferindo palavras obscenas aos jovens. João Inocêncio chegou a baixar as cuecas, empunhar o membro e mandar os debochados para todos os lugares que lhe vinham à cabeça.
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No meio da manhã, já de banho tomado, roupas limpas, caras de sono e perfilados diante do leito do morto, à exceção de Leonel Celestino que fugiu com o colono para o Rio de Janeiro, afinal, como declarou à esposa, não seria só a bomba das maracutaias que estouraria sobre ele; os políticos procuravam um acordo para o impasse.
Adamastor Barranca informava que sua paciência estava prestes a acabar. Mal terminara de falar, João Bento entrou com o resultado das últimas pesquisas, feita por seu partido. Ansioso, o finado nem esperou que seu auxiliar começasse a leitura. Tomou-lhe a lista das mãos e de olhos arregalados constatou que estava em terceiro lugar, atrás do jegue e de Benhur, que ocupava a primeira colocação, com larga margem de vantagem sobre os demais candidatos.
Aos berros, ordenava a Bento que chamasse a imprensa, enquanto que as autoridades tentavam dissuadi-lo da idéia, afirmando que um fato novo e imprevisto, o voto feminino a favor de um suposto concorrente esculhambara de vez com a eleição. Na verdade, explicavam, as pesquisas apontam como vencedor legal o quarto colocado, o candidato da situação, já que ele, Adamastor Barranca, estava em terceiro, mas candidato morto não vale – concluía Jairo Quadrão, de forma didática.
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Duas horas depois, diversos profissionais de imprensa da capital e até do centro do país cercavam a cama de Adamastor. Alguns o tocavam, certificando-se de que o candidato a prefeito ressuscitara, mas, a maioria achava que ele não havia morrido e já planejava suas matérias dizendo que seu falecimento não passara de uma fraude, talvez um golpe eleitoral ou alguma jogada de marketing – o que deixava o finado louco da vida ou será da morte?
De uma maneira calma, mas, num tom ameaçador, Adamastor alertava que passaria a limpo a história social, econômica e política recente de Tupilândia. Antes, falou para as autoridades locais:
- Vou provar a vocês que eu mudei, apesar de tudo. Que não faço mais parte dessa corja interesseira, corrupta, hipócrita e parasitária da qual vocês sãos os principais líderes.
E se dirigindo aos jornalistas, tendo ao fundo a batucada de dentes, pernas e pés que o pavor provocava nos implicados, começou suas denúncias:
- Eu, Adamastor Barranca, deputado federal licenciado e candidato morto a prefeito de Tupilândia – alguns jornalistas tentaram protestar quanto à palavra morto, mas o orador não lhes deu atenção – em pleno gozo das minhas faculdades mentais, venho nesta quinta-feira...
- Sexta, doutor – corrigiu-o um repórter.
- Sexta? – indagou surpreso o finado
- Sexta – responderam todos.
- Têm certeza?
- Absoluta – uma jornalista chegou a lhe alcançar a folhinha que estava na parede.
- Ora, vejam só! É sexta-feira mesmo!
Sem dar tempo para perguntas que o interrompessem, declarou:
- Bom, sextas-feiras eu não trabalho.
E completou, antes de partir:
- Nem morto.