Os Vinte Por Cento - Segunda Parte

O surgimento de velhos acontecimentos da política local e principalmente de sua vida particular abalaram Leonel Celestino, um homem reconhecido por todos por seu equilíbrio emocional. Desmaiou perante o grupo atônito, que sentia que o dia do Juízo Final chegara.

Indesejáveis, obscuras e insolúveis estórias, que há anos as principais lideranças regionais tentavam fazer a população esquecer, vinham à tona. E agora, o juiz Leonel Celestino, pessoa de irrepreensível moral, caráter e reconhecida hombridade, tinha sua vida ameaçada por um anarquista do além, como o magistrado definiu o defunto.

Quando ainda era vereador, Leonel Celestino trouxe para morar em sua casa um jovem mulato, alto e forte, dizendo à esposa e à cidade que se tratava de Jacinto, um sobrinho distante, que ele resolvera ajudar. Dona Glória sentindo que alguma coisa não estava certa, tratou de fazer a árvore genealógica do esposo, na esperança de encontrar uma solução para dúvida que não a deixava dormir, juntamente, com os gemidos e gritos do marido, quando ele levantava no meio da noite para beber água.

Assim, ela gastou meses de sua vida sem encontrar uma resposta concreta para o caso. “E põe caso nisso”, matutava a mulher. Faltava apenas saber de um irmão de Leonel, que morrera aos doze anos de idade. Fora esse, nunca tomara conhecimento de alguém na família, que houvesse tido um filho com uma pessoa da raça negra. “Para falar a verdade, era todo mundo meio racista”, concluía a esposa do futuro juiz.

Um dia à tardinha, enquanto dona Glória visitava uma irmã, seu Leonel chegou em casa, encontrando Jacinto e a doméstica em sua cama. Depois de exigir a devolução de todas as roupas e presentes que dera ao suposto sobrinho, expulsou o casal da cidade, sob a ameaça, de que se voltassem seriam mortos. Temia o escândalo, afinal na época, além de vereador, também era diretor da Associação da Família Tupilandense, entidade cujos membros se reuniam aos domingos para almoçar com o padre em prol das crianças carentes.

Sofrendo desesperadamente com a traição, Leonel tomou uma atitude drástica: vestiu a camisola de sede cor de rosa com babados lilás, que usava na intimidade com o amante, e se foi para a linha do trem, um quilômetro após a estação ferroviária.

Era uma noite de julho, gelada. O vereador sentiu certo desconforto, quando suas costas tocaram nos trilhos frios. Quase desistiu, ao imaginar seu corpo, pela manhã, coberto de gelo e os cachorros a cheirarem um braço aqui, um dedo ali, uma perna mais adiante. Mas, o choque amoroso era grande e para não voltar atrás em sua decisão, algemou o braço esquerdo nos trilhos, jogando longe as chaves.

“Pronto. Agora era só esperar. E como estava baixa a temperatura”, pensava. Seu consolo era saber, que se caso o trem atrasasse, morreria de frio. E a composição atrasou. Angustiado, o suicida tentava vencer a ansiedade e o medo, batucando com os dedos no peito e cantarolando uma marchinha de carnaval. De repente, viu a luz lá na curva. Seu coração acelerou, o corpo tremia, veio-lhe o pavor e a mudança de idéia. Agora, era tarde. O farol aproximava-se. Não ouvia o apito, o que aumentava sua aflição. Na certa, o maquinista não o veria ali deitado e a locomotiva mais uns vinte vagões passariam por cima de seu corpo. Sentia o tremor aumentar à medida que a morte se tornava iminente. Gotas de suor escorriam por sua face, apesar da temperatura baixa. Urinava-se e o mijo escorria por suas nádegas e em parte das costas, o que lhe dava nojo e aumentava sua angústia em se livrar daquela situação.

A luz vinha devagar executar sua sentença. Com uma das mãos, seu Leonel procurava inutilmente as chaves na escuridão. Tremia tanto, que suas costas se machucavam no atrito com os ferros e as madeiras. Quando o foco estava a poucos metros se pôs a chorar, e não agüentando a angústia, começou a gritar para que Deus o poupasse de tamanha tragédia. Cerrou os olhos e virou o rosto na direção contrária, na ilusão de se proteger do choque. Deu uma última olhadela e desmaiou.

Ao recobrar os sentidos e constatar que todos os seus membros permaneciam unidos, Leonel Celestino respirou aliviado. Só após, é que se deu conta do lampião por cima de sua cabeça, seguro pelo agente ferroviário, que o observava supresso.

- Mas o que houve com o senhor, doutor?

O vereador não escutou a pergunta, indagando aos gritos:

- Cadê a porra desse trem, homem?

- O pessoal da rede entrou em greve por melhores salários.

- Tá brincando?! Tá brincando?!

- Não tô não, doutor. Tava todo mundo, lá na estação, decidindo sobre os rumos do movimento. Agora, já foram todos pra casa. Hoje, o trem só veio até Tupilândia. Eu já estava indo pra casa também e por sorte encontrei o senhor aí.

- Me tira daqui, me tira daqui! – ordenava ao homem. – Comunistas de merda. A revolução não acabou com todos eles. Cambada de inúteis – dizia fungando e morto de vergonha ao ver que o funcionário, constrangido e espantado, não tirava os olhos de sua roupa íntima.

- Mas o que foi isso, doutor?

- Um atentado político. Tentaram me matar e ainda por cima me ridicularizar com essa roupa idiota, que eles me obrigaram a usar.

Uma hora depois, uma multidão procurava as chaves, que o suicida dizia terem os terroristas jogados por ali, enquanto riam, debochavam de sua pessoa e davam vivas à Cuba e à União Soviética. Presentes o promotor, o delegado, vereadores e vários políticos de municípios vizinhos, além de dezenas de populares perplexos com a violência da ação extremista. Volta e meia, ouviam-se discursos em favor de Leonel Celestino e gritos clamando justiça.

Com base na descrição feita pela vítima, uma patrulha capitaneada pelo delegado saiu à caça dos guerrilheiros, todos negros, jovens e magros.

- Com um retrato tão perfeito como este, nós logo vamos achar esses homens – dizia o recém-nomeado delegado, doutor Toríbio.

A previsão do policial não tardou a se realizar. Não longe dali, o grupo encontrou um andarilho de origem indígena, que passava a noite numa cabana abandonada.

Prestes a ser linchado, o índio protestou, jurou inocência, revelou que tinha poderes paranormais e que antes de morrer entregaria todos os ladrões, corruptos, cornos, impotentes e homossexuais do grupo. Como se vê, as forças ocultas e sobrenaturais sempre causaram muitos estragos à cidade de Tupilândia.

Frente à descrença dos homens, o jovem tratou de dar uma amostra do que afirmava:

- O senhor, seu promotor, jantou apenas uma canja de galinha, porque está mal do fígado. Por falar em galinha, o senhor seu delegado, agora à noite, estava de namoro com a secretária da prefeitura numa das celas da delegacia e quase transaram.

Estupefata, a multidão começou a se dissipar. Depois de vencer o embaraço, o policial foi se aproximando com uma cara de ódio do vidente, que sussurrou:

- Pode ficar tranqüilo que eu não vou contar por que não transaram – e deu um sorriso malicioso, como ponto final.

O delegado ainda ia ameaçá-lo, mas foi interrompido pelo paranormal, que aos gritos, mandava que todos fossem embora.

- E agora se mandem daqui, antes que eu revele quem é que gosta de dormir em quarto separado da esposa, vestido de mulher.

Saíram correndo. Na pressa, uns até perderam as armas, que ficaram espalhadas pelo chão. Somente um sujeito, de bigodes grossos e compridos, teve coragem de chegar bem perto do rosto do jovem e lhe dizer baixinho, num tom de repúdio:

- Nojento. Asqueroso.

O índio não lhe deu ouvidos, recomendando ao policial que veio buscar o homem:

- Tome catuaba, seu Toríbio. O senhor anda muito estressado. Mas não se preocupe. Essa falha só aconteceu hoje. Amanhã vai dar tudo certo.

- Jura?! – perguntou o delegado alegre e aliviado.

- Juro. O problema é que a mulher vai contar da sua dificuldade para muita gente.

- Tô perdido. Tô perdido – começou a chorar. Colocou as mãos trêmulas sobre a face, enquanto se acocorava, tentando ouvir algum conselho do andarilho.

- Vai ser a sua palavra contra a dela – procurava consolá-lo.

- Logo se vê que vossa excelência não conhece esse pessoal daqui. O povo é muito machista. Vão acreditar nela. Imagina se eles vão perder a chance de se divertir com um falatório sobre um delegado broxa.

- Aí o senhor prova que é mentira.

- Como? Mesmo eu sendo filho de Tupilândia, do jeito que essa gente é fofoqueira, vou ter que comer a cidade inteira. - E se retirou indignado.

No dia seguinte, os jornais da região davam ampla divulgação ao ocorrido, ressaltando a frieza e o sadismo dos subversivos, que queriam uma morte tão horrível para o vereador.

Artuzinho Mesa, analista político da Gazeta Tupilandese, condenava o deboche às instituições, bem como à figura irretocável de Leonel Celestino, um dos pilares da honra, moral e macheza da cidade. A brincadeira de vesti-lo com uma camisola e ainda por cima de cores tão espalhafatosas só poderia partir de mentes doentias e depravadas, certamente degenerados que não pertenciam à comunidade.

O padre Adalberto rezou uma missa em homenagem à vítima, que foi condecorada por sua bravura e reconhecida hombridade numa sessão solene da Câmara de Vereadores, oportunidade em que se prestou uma saudação especial ao jornalista Artuzinho Mesa, por sua mente lúcida e suas idéias sempre a favor da verdade e na luta pelos interesses do município e da região.

Vale lembrar, que foi Leonel Celestino, anos mais tarde, quando se elegeu prefeito, quem criou a Frente da Moral e da Masculinidade de Tupilândia. A associação visava resgatar, fortalecer e preservar as tradições culturais e as convicções masculinas nos jovens locais. Leonel Celestino chegava a ter calafrios, todas as vezes em que ia à janela de seu gabinete e espreitava a praça, onde diariamente, às dez horas, Afonsinho, filho do dono da farmácia e estudante de balé na capital, cruzava o espaço público, rumo aos ensaios que realizava em uma sala do clube local, quando em férias na cidade, sendo imitado nos passos de sua arte por diversos freqüentadores habituais do largo.

A um assessor, o prefeito confessou que o problema não se restringia apenas à imitação ou ao deboche, mas, à perfeição com que alguns repetiam os passos e os movimentos do rapaz. Mas, em seu íntimo brotavam os verdadeiros motivos para a criação da frente. A raiva e a inveja contra aqueles que tinham coragem de assumir suas posições, que enfrentavam tudo e todos para serem felizes. Gente que não tinha medo de gritar em público que era feliz por suas escolhas. Deprimido, confessava-se a si mesmo, ser um perdedor. Um medíocre, que vivia um casamento de aparências e que só tinha momentos de felicidade e prazer escondido entre quatro paredes, assim mesmo, uma felicidade e um prazer abreviados pelo receio, pela moral e pela vergonha.

A criação da entidade gerou protestos, como o do vereador Pedrão – esquerdista, radical, extremista e ortodoxo, como ele mesmo gostava de se definir, pai do futuro vereador Pedrinho Júnior – que alertava que a entidade era puro desperdício do dinheiro público.

Já as populações dos municípios vizinhos diziam que se a situação chegou ao ponto de ter que se gerar algo para resgatar e preservar a macheza dos homens da cidade é porque a coisa ia muito mal.

Os tupilandenses começaram a ser ridicularizados em toda a parte. Até nos ônibus, quando o sujeito revelava seu destino, não escapava da gozação de um passageiro ou do cobrador:

- Vais lá resgatar o PIS/PASEP? O FGTS? Ou a tal?

A brincadeira gerou um aumento no índice do custo de vida da cidade, já que a maioria dos moradores, constrangida com as zombarias, comprava passagem até a localidade de Barro Alto, localizada após Tupilândia, mas descia na cidade, só para não ter que enfrentar os olhares maliciosos dos outros passageiros. Além disso, a gozação fez com que o cobrador levasse um tiro na perna e várias pessoas ficassem feridas, quando, um vivente, cansado de tantas troças, armou um tiroteio dentro do veículo.

No município vizinho de Belenzinho, um vereador fez o seguinte discurso:

- Tem gente pedindo para que não se mate macaco, anta e veado. Dizem que tem que se preservar esses bichos, porque eles estão acabando. Já na querida cidade de Tupilândia, aqueles bonecas querem preservar e ainda por cima, resgatar a macheza...

Na mesma Câmara, outro parlamentar mostrava uma pesquisa, ninguém sabe feita por quem, que apontava o alto índice de carência, insatisfação e necessidades sexuais das mulheres tupilandenses e pedia ao prefeito de Belenzinho, a construção de um motel público na divisa dos dois municípios ou pelo menos a compra de um ônibus leito, com o intuito de enviar vários homens da cidade, em missão humanitária, a Angola Brasileira, onde ninguém comia ninguém.

Quando terminou seu discurso, dando ênfase à última frase, foi aplaudido de pé pelos colegas e por dezenas de homens, que se acotovelavam nas galerias lotadas.

O pronunciamento fez com que inúmeras excursões, que se dirigiam à terra de Leonel Celestino, fossem recebidas à bala pelos indignados tupilandenses, inclusive uma de seminaristas, que juravam só estar a passeio.

Cansado de tantas gozações, Leonel Celestino pediu ao serviço secreto da cidade que fizesse o levantamento de quantos homossexuais existiam nos municípios próximos. Depois, a lista foi publicada no jornal local e também num matutino regional. Belenzinho era a campeã com quinze homossexuais, seguida por Aurora com oito, Angelina com seis, Campos da Porteira tinha cinco – sendo que um, era um homem de quarenta e cinco anos ainda virgem – e Tupilândia em último sem nenhum, já que a dupla, que existiam lá na Vila do Descampado, foi expulsa no início da contagem e o dançarino, que ninguém sabia se era ou não, foi classificado na categoria de artista mundialmente conhecido.

O ato arbitrário contra os dois moradores do Descampado, bem como a publicação da lista, fez com que o vereador Pedrão, presidente da Comissão Humanitária da Câmara Municipal, numa reunião com o prefeito e vereadores, manifestasse todo seu repúdio contra as medidas que feriam os direitos humanos.

Ao final da exposição, o parlamentar e futuro prefeito João Inocêncio levantou-se, olhou sério para o colega e disse num tom irônico:

- Agora deu para defender esses aí também, é?

E os vereadores em coro:

- Hummmmm!

Anos mais tarde, quando a ação terrorista já fazia parte dos crimes insolúveis de Tupilândia e praticamente não era mais comentada pela população, o então prefeito Leonel Celestino apareceu com um gringo alto, forte, de pele avermelhada e cabelos loiros, encaracolados. Ao entrar em casa, a esposa nem lhe deu tempo de se explicar. Para lá de desconfiada, correu para a árvore genealógica que deixava sempre à mão, na gaveta da cômoda, ao lado da cama, e constatou o que já sabia: não havia nenhum italiano, alemão ou polaco na família e o guri de doze anos morreu virgem.

Seu Leonel não se abalou pelos protestos de dona Glória, apresentando logo seu assessor para assuntos extraordinários. Temerosa, a mulher não fez questão de esclarecer que assuntos extraordinários eram esses. Mas, depois de uma conversação entre o casal, três foram os motivos para que ela queimasse o registro histórico da família do marido e o deixasse contratar ou se aparentar com quem quisesse: o receio do divórcio e sua conseqüente marginalização na alta sociedade local, a promessa que vinte por cento, sempre eles, do fundo para crianças carentes seriam reservados para suas compras na capital ou no centro do país e um emprego vitalício de consultora de assuntos de etiqueta e boas maneiras na prefeitura.

Após algumas semanas, quando dona Glória visitava a irmã, Leonel Celestino surpreendeu seu assessor para assuntos extraordinários com a extraordinária cozinheira Dalila. Na hora, expulsou-os de casa, fazendo as mesmas ameaças do primeiro flagrante, querendo ainda saber, porque esses imundos tinham que fazer essas porcarias, segundo suas palavras, em sua cama.

Ao retornar e saber do ocorrido, da boca do próprio marido, que aos prantos relatava toda sua indignação e tristeza com a traição, dona Glória não temeu um novo atentado, mas sim a situação apavorante de ficar sem empregada e ter que ir para a cozinha.

Dias depois, numa noite gelada, após uma reunião para desenvolver atividades culturais e esportivas que desenvolvessem a saúde física, mental e a macheza dos jovens da cidade, seu Leonel muito deprimido, vestiu somente uma calcinha, tipo asa delta, e a jaqueta do Clube dos Caçadores de Tupilândia, a mais antiga e tradicional entidade da cidade, pintou a boca com um batom berrante, colocou a peruca, ficando do jeito que o amante apreciava e se mandou para os trilhos. Tomou o cuidado de deitar um quilômetro antes da estação a fim de evitar que insurreições comunistas, como se referia às greves, impedissem seu plano.

Deitou-se sobre os ferros, algemou a mão esquerda, beijou as chaves e as jogou longe. O frio castigava mais do que o da primeira vez. A temperatura baixa contava com um vento forte, que quando chicoteava o corpo do suicida, lhe dava a impressão de cortá-lo.

Determinado, o prefeito esperou a hora em que o trem faria seu papel. Não estava nervoso, só tremia de frio. Pensou que poderia ter posto um cobertor sobre o corpo. Sua calma devia-se ao raciocínio de que pior que ser esmagado por uma locomotiva e uma dezena de vagões, seria passar por toda aquela situação vexatória, que ocorrera em sua tentativa anterior. Não podia sequer imaginar não obter êxito. Esse trem tinha que chegar. Por precaução, logo pela manhã, ligou para a rede ferroviária, querendo saber se havia clima de greve entre os funcionários. O atendente explicou-lhe, estranhando a pergunta, achando até que era coisa do SNI ou da Polícia Federal, já que a pessoa não quis se identificar, que o clima de descontentamento sempre existia, mas, que não havia nenhum movimento reivindicatório marcado para aquela noite.

Não demorou muito para que a luz aparecesse lá na curva, para a satisfação de seu Leonel. Aos poucos, ela foi se aproximando. Desta vez ele não virava o rosto. Encarava a morte de frente, incentivando-a:

- Vem! Vem!

Não sentia ainda a trepidação nos trilhos. Olhou para os lados. Tudo escuro, nenhuma viva alma. Se pudesse daria pulos de alegria. Imaginou o amante arrependido e cheio de remorsos ao saber de seu ato. Sua satisfação terminou quando pode visualizar o vulto que empunhava a lanterna.

- Cadê o trem, desgraçado?

E o mesmo funcionário de tempos atrás, disse:

- Descarrilhou, doutor.

- Ah, essa não! Essa não! – teve vontade de chorar, ao pensar que estava prestes a

passar novamente por um detalhado interrogatório e a curiosidade mórbida daquela gentinha de Tupilândia, maneira como entre amigos chamava seus eleitores. Só não deixou que as lágrimas escorressem, por que achava que isso não era coisa de macho.

O metroviário, agora líder sindical, explicava-lhe a situação:

- Esse governo de merda, doutor. Capacho do imperialismo americano. Conseguiu sucatear os serviços básicos da pátria. São os trens, os portos, as jazidas minerais e ainda falam em privatizar...

- Ah não! Essa não! Papo de sindicalista só não é mais chato do que o filho do meu vizinho, metido a tocar berimbau. Tenha santa paciência. Chama lá todo mundo, que eu não agüento mais essa conversa.

- Mas o que houve, doutor? – perguntou surpreso.

- Outro atentado.

- Credo! E de novo debocharam do senhor!

- Para você ver! – respondeu aborrecido.

- Mas dessa vez foi demais. Além do batom e da peruca, até as tradições atacaram. Precisavam bordar essa rosa no peito e ainda por cima com essa inscrição “Do Teu Lino” bem ao lado do distintivo do Clube de Caçadores?

A observação deixou o prefeito petrificado. Havia esquecido da flor à altura do coração, que ele próprio bordara, dias atrás. Constrangido, pediu que o ferroviário corresse em busca de ajuda, mas antes, conseguisse um cobertor.

O funcionário cedeu seu poncho e enfrentando a madrugada gelada, apenas com suas finas e pobres roupas, correu para a cidade.

Sentado nos ferros, Leonel Celestino via a aproximação de dezenas de automóveis a buzinar, pensando que nem a visita de um astro de rock ou dois extraterrestres transando chamariam tanta atenção. E a população veio em peso. Uns para ajudar o perseguido pelo terrorismo, outros para auxiliar no resgate das poucas vítimas sem gravidade do acidente com o trem.

A polícia não deixou que se tirasse a manta que cobria o prefeito. Muita gente já sabia que tinham esculhambado de novo com o homem, só que desta vez era bem pior.

Logo após terem serrado as algemas, iniciou-se a perseguição aos marginais, segundo Celestino, os mesmo do atentado anterior. O delegado ordenou que se procurasse em todas as direções, menos para os lados da antiga casa abandonada, que servira de guarita ao índio andarilho, com medo de que por lá aparecesse outro vidente.

Várias autoridades pediam a Leonel Celestino que se benzesse, enquanto que outras solicitavam a abertura de uma investigação rigorosa, doa a quem doer, na tentativa de descobrir qual o grupo político, que perseguia de maneira tão cruel o chefe do executivo municipal e líder do partido governista.

Ao chegar em casa, seu Leonel foi recebido pela esposa, que foi logo expondo a situação:

- Tudo bem. Eu só não abro mão de três coisas: do casamento, dos meus vinte por cento e do meu cargo na prefeitura.

A união continuou, mas, depois desse episódio, dona Glória deu mais atenção à realização de seus sonhos, o que a obrigava a constantes viagens pelo mundo, graças ao acordo que tinha com o marido, sem se importar com os mexericos das vizinhas e amigas e das denúncias da oposição sobre desperdício de dinheiro público, afinal o prefeito tinha uma primeira dama e ela um marido. Para aquela gente, pior que um prefeito ladrão era ter um prefeito gay - concluía dona Glória.

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Coincidência ou não, após o desmaio de Leonel Celestino, dona Glória surgiu no velório, acompanhada por um rapaz de uns vinte e sete anos de idade, pinta de surfista, recém-chegada do centro do país.

Aos presentes, principalmente às mulheres, a esposa do juiz apresentava seu guru energético, sem se preocupar com os ti-ti-tis, os murmúrios, rostos surpresos e repressores. Vaidosa, explicava que Benhur procurava energizar o corpo e a mente através do amplo desenvolvimento da atividade sexual, coisa de gente sofisticada que só existia em cidade grande.

O terapeuta falava a um grupo de moças e também para algumas senhoras, tudo com o consentimento de sua cliente, que a Glórinha sofria de um problema de contraponto na respiração, milésimos de segundo antes do orgasmo, o que impedia a perfeita harmonia entre as funções físicas, mentais e o desejo, fazendo assim com que ela não chegasse ao clímax, gerando depressão e ansiedade.

Depois da exposição, foram tantas as consultas marcadas, que Benhur foi obrigado a abrir uma filial de seu consultório da Terapia Energética Universal em Tupilândia. Maravilhadas, as mulheres das mais diversas idades brigavam para marcar a hora mais próxima. Para satisfazer a clientela, seria necessário que o terapeuta atendesse a domicílio durante semanas, sempre nas horas em que os maridos estavam trabalhando.

Joana, filha de Jairo Quadrão, teve uma crise nervosa e quase foi lá para os trilhos, ao receber do forasteiro uma resposta negativa ao seu pedido de casamento. Consolou-se com o convite, para passar um fim-de-semana em uma pousada na serra, às custas de sua mesada, já que o dinheiro da Terapia Energética Universal era todo destinado à uma entidade cultural e filantrópica, que funcionava em endereço incerto, e da qual Benhur era presidente.

O guru explicou à jovem que nunca poderia realizar seu maior sonho: o de casar e constituir família. Isso devido à sua missão terrena de distribuir amor e prazer entre as mulheres infelizes, e evitar o egoísmo, resignando-se com sua perpétua solidão.

Tornado público, o argumento comoveu a população feminina, fazendo com que Benhur desbancasse Padre Alberto e Totonho do posto de mais queridos da cidade, eleição realizada anualmente pelo Movimento das Senhoras de Boa Vontade de Tupilândia.

A perda da posição que dividiam, obrigou o religioso e o colunista a recorrerem a um despacho para expulsar o forasteiro metido do município ou pelo menos que o tornasse incapacitado para o pleno exercício de sua profissão.

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Paulo Antonio Branco
Enviado por Paulo Antonio Branco em 22/07/2011
Código do texto: T3112385
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