CRÚ

Ela continuava insistindo em querer saber o que me afligia. Eu gostaria que ela morresse bem lentamente, para que eu então pudesse perguntar o que a afligia. Não sei como responder, não há resposta para o desconhecido. Quando morremos, nos tornamos hipótese que jamais poderá ser solucionada, eis a grande loucura. Saber-se hipótese e ainda assim correr atrás de respostas, respostas estas que nunca virão. Eu gostaria de responder que estou bem, que agora serei um católico fervoroso como sempre deveria ter sido (considerando tão somente a herança familiar, é claro). Mas não posso mentir de forma tão consciente. As minhas mentiras inconscientes estão se esgotando, preciso calar-me. Quanto menos falar, menos risco de descobrir algo que me motive verdadeiramente a querer viver. Se isso acontecer, terei sido completamente enganado. E este é um risco que o desespero nos aponta o tempo todo. Não quero mais correr riscos, não neste segundo. Pode ser que daqui a alguns minutos eu mude de idéia, lendo algum tratado oriental sobre a energia interna que faz fortalecer nosso emocional, ou algo assim.

Ela me disse, de maneira tênue, quase desculpando-se, que havia notado uma tristeza profunda em meu olhar. Eu nada disse, argumentei que talvez fosse apenas impressão, afinal eu estava verdadeiramente cansado, e quem sabe quais pensamentos homicidas me passavam pela mente naquele momento. Havia também o sol, estava calor demais e a minha pressão certamente caíra. O fato é que ela percebeu, depois de tantos anos de relacionamento, que eu sou uma pessoa profundamente triste. Mas essa tristeza é uma bobagem inútil, é muito cômodo ser misericordioso consigo mesmo, justificar a tristeza, transferí-la para as dores do mundo. Bobagens. Não sei o que fazer. Sentia-me seguro por viver com alguém que verdadeiramente não me conhecia, agora isso já não acontece mais. Ainda que por um instante, ela conseguiu vislumbrar aquilo que eu sou, aquilo que tenho de mais secreto, o meu descontentamento.

Só se pode conhecer verdadeiramente o amor quando sua ausência se faz gritante, quando nos apercebemos de sua infinita e profunda inadequação àquilo que nós tememos ser. Só a dor da ausência de amor, aquele silêncio de qualidade, aquele comparável a um campo de flores, aquele que se opõe ao silêncio tumular, o que nos resta final, nele talvez haja explicação, mesmo que frágil, para esta tal dor profunda, esta que arrasta qualquer um ao desespero, por mais que este desespero pareça normal e nos queira fazer mais do que aquilo que nós somos ou pretendemos ser em toda a nossa vida. A nossa existência parece urgir em gritar que não, e não é sempre nunca mais, já que o momento não retorna, a não ser como lembrança distorcida, farsa tôsca, aquilo que nos leva ao simples e miserável desassossego. Ela continuava a falar, desviei o olhar e encontrei o espelho...

O espelho...ele sempre me surpreende. Cada vez mais tenho marcas pelo corpo. Cicatrizes profundas, algumas ainda doem, outras ainda não cicatrizaram muito bem, mas ainda tenho um corpo bonito. Olho e me vejo nu, vejo a flacidez que se aproxima, a velhice implacável. Vejo partes de meu cabelo já totalmente brancas, vejo em minha pele aquilo que falta, vejo a ausência de brilho, de tônus, de vida. Pele ressecada. A barriga começando a ficar saliente, os poucos pêlos no tórax, que descem até a barriga. Vejo o pênis flácido e humilde, não tão grande, não tão pequeno, apenas aceitável. Os testículos roxos, tudo coberto por uma espessa camada de pentelhos. Figura patética. Como alguém pode ser tão patético! E eu ainda não tenho cinqüenta anos. Mas há algo que não posso esconder, meus olhos. Um olhar de profunda angústia, de miséria infinita, de poucas mulheres. Um olhar de poucas mulheres. Tive poucas, todas tão intensas, todas tão promíscuas. Lembro-me da primeira, quando eu tinha apenas sete anos. Ela era maníaca, totalmente depravada. Mas como fazia a felicidade de tantos garotos daquela época. Anos 60, ainda não existia a AIDS e muito menos a paranóia em torno dela. Perdi a virgindade aos sete anos, se é que algo assim é possível. Acho que isso fez com que qualquer glamour referente ao sexo para mim se perdesse. Mulheres vieram, aprendi a amá-las. Sobrevivi às paranóias, sobrevivi a tudo e ainda assim nunca mais fui tão feliz, como nas tardes em que fugíamos para o quintal dela, a doce, que transava com os garotos maiores e deixava os menores ficarem olhando, que nos beijava, nos acariciava nus e nos tratava como filhos, irmãos menores. Ela era uma verdadeira santa. Mas porque o espelho me faz lembrar disso? Talvez para que eu perceba aquilo que não posso mais, não sou mais. Olho meu corpo, minhas vontades todas já acabaram. Só me resta o fascínio pela dor, pela angústia, pela arbitrariedade.

Retorno o olhar para a mesa, para ela. Sentada com a típica postura de sempre, a postura de uma sombra, ao menos tornada sombra para mim, já há tanto tempo. Porém pude notar nuances da mulher com que eu casara tantos anos atrás. Sua força, seu olhar penetrante, olhar de quem mira o vazio, com aquela tristeza compartilhada apenas pelos que sabem reconhecer a completa ausência de lógica no outro, o ilógico fato de que existe outro, e que nos torna tão infinitamente miseráveis, pequenos, inúteis. Neste instante ela deixou de ser sombra, seu rosto parecia comportar toda a angústia, que certamente era apenas reflexo da minha, mas que desta forma eu podia ver. Então retomamos aquele doloroso diálogo, o diálogo das palavras desnecessárias, aquelas que só podem causar dor. Silêncio tumular.

__ Então devemos falar...

Cada sílaba, cada palavra. Cada fonema, semema, morfema ou sei lá o que mais pronunciado com clareza, a clareza das grande advogadas, mulheres que sabem defender seus clientes. Ela me assustava às vezes, às vezes me enternecia. Lembrei-me de seu amante, aquele belo negro, nigeriano, muito mais jovem, infinitamente mais interessante, certamente melhor dotado do que eu. Fiquei confortável. Se, de alguma forma eu havia feito mal a ela, ele era como um bálsamo, um sopro de delicadeza, misturado ao sexo, aos odores corporais, com palavras pensadas que eu certamente já não era capaz de dizer, mas que ela ainda necessitava, com certeza, ouvir.

__ Se eu escrevesse uma carta, uma petição, um e-mail, ou ainda vomitasse frases desconexas em uma folha de jornal amassada qualquer... Qual seria a diferença? Você continua cercado, ilhado em sua imensa solidão. Talvez eu tenha exagerado demais ao querer penetrar em um universo que jamais foi meu. Sei que me ouve como quem ouve ruídos urbanos em uma janela qualquer, passagens tolas, momentos que são esquecidos no instante em que acontecem. O que posso mais dizer? Nossos filhos estão crescidos, nada mais nos resta a não ser a dor de perceber um erro tão antigo, tão desnecessário, hoje tão incompreensível. Quisera poder entender cada fagulha de tua alma alucinada, cada farpa gélida que corrói tua pele, escorrendo pelos seus poros. Mas é tarde demais, tarde demais para qualquer um de nós, ao menos juntos. Separados, talvez eu possa descobrir que existe vida além de você, além da morte em vida que hoje você se tornou. Palavras fazem mal... Não tenho nada de novo para te dizer, nada que eu não tenha ainda dito, nada que valha a pena vociferar em fúria.

Então a vi levantar com um pequeno brilho nos olhos, surpreendente brilho, já que ela sempre fôra a combinação perfeita de autocontrole e inteligência extremada. Não pude dizer nada, nada do que eu pudesse dizer poderia soar menos do que artificial, como sempre fui, acho que sempre fui assim... - uma espécie de resposta patética e verdadeiramente artificial.

___ O gato fica. - estas foram as últimas palavras que eu ouvi saídas daqueles lábios nordestinos que outrora já haviam feito homens muito mais interessantes do que eu enlouquecerem. Ela foi embora, e eu fiquei sozinho, sozinho com um gato inútil, tão inútil quanto eu.

Esperei complacente que ela saísse. Então fui até o quintal. Ainda pude ver o carro com os dois se afastando. Ela e o belo negro, cujo nome eu nunca quis perguntar. Fiquei ali, olhando o telhado.

Quando algo não me fazia bem, cultivava o estranho hábito de ficar mirando o telhado de casa. Talvez na expectativa de ver meu avô dançando lá em cima. Meu avô fôra uma das figuras mais estranhas com as quais já convivi em minha vida. Tinha uma maneira peculiar de responder às indagações que lhe fazíamos. Sempre quando perguntávamos por alguém, nos respondia que estava no telhado, dançando. Lembro-me que certa vez minha mãe ficara doente, e eu, ao lhe perguntar, ouvi que ela estava dançando rumba no telhado, prestes a ser abduzida por uma legião de extraterrestres dançarinos. Quando ela morreu, achei realmente que ela fora levada por uma legião de extraterrestres. De certa forma isto me consolava, talvez tenha me feito sofrer menos. Quando não estou bem, fico olhando para o alto, para algum telhado na esperança de poder ver meu avô ali dançando, talvez com minha mãe, talvez com a avó que eu nunca conheci. As vezes via meu gato no telhado, como agora, e ficava a me questionar se ele por acaso não via, se, de repente, ele não podia ver meu avô dançando. Ele morreu pouco tempo depois de completar 70 anos, alguns dias antes havia me dito que precisava seguir para as montanhas de Narayama, mas que se sentia envergonhado por ainda ter dentes. Ainda preciso estudar os mitos japoneses para tentar entender.

E o gato estava ali, me olhando, com comiseração. Sentei-me próximo a ele, senti que ele era solidário a mim. De certa forma às vezes eu tinha mesmo a impressão de ser como um gato, em um estado permanente de vida inerte e morte iminente, ambos os estados ocorrendo ao mesmo tempo. Como poderia ser alguém assim tão desprovido de esperança? Acreditava que deveria ter esperanças, mas quando a mais profunda miséria já não desperta nenhuma compaixão, então não há o que fazer, a não ser sucumbir à própria miséria, já que dela nada mais se pode esperar a não ser um sono cada vez mais conturbado, recheado de pesadelos cada vez mais reais, recheado cada vez mais de um desapego à toda e qualquer forma de realidade, às muitas realidades que por vezes nos tornam assim tão humanos. Queria ser tomado pelo silêncio da recreação mental, aquele que indica os caminhos para se alcançar um distanciamento interior, necessário para recriar o indescritível. Palavras são tão desnecessárias! Adoraria achar um meio de extinguir as palavras, os gestos, os olhares bruscos... Transformar a comunicação em uma massa de pensamentos claros e coerentes, livres dos distúrbios que a torna tão ineficiente, mas não há o que comer no deserto místico do conhecimento acadêmico, a não ser fórmulas precisas de ausência e meios eficazes de alimentar o ego... Eu me classifico então como um ser irregular, talvez tenha algum talento, mas sou completamente irregular. Fiquei ali algum tempo, tentando conter as lágrimas, olhando para o telhado, olhando para o gato. Até que ele resolveu descer, entrar em casa. Resolvi segui-lo. Entrei em casa, fui até o banheiro e me despi. Fui até a sala completamente nu, como se participasse de um ritual onde os gestos meticulosamente calculados fossem mais importantes do que o próprio percurso, do que o próprio ato em si, e parei em frente ao espelho. Fiquei ali, em pé, por muito tempo, contemplando mais uma vez a extensão da minha miséria, tanto tempo que já não me lembro mais... O calor campineiro sempre me fez suar em bicas. Respirei profundamente, ainda teria que dar aula, ainda teria que mentir para uma sala repleta de jovens esperançosos e ávidos por conhecimento, por aventuras. Então o gato surgiu à minha frente, e começou a miar. Solidão...

Marcos Rohfe
Enviado por Marcos Rohfe em 06/12/2006
Reeditado em 16/07/2015
Código do texto: T310983
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