OS SONHOS DE JOSÉ
Nove horas da noite. José salta do metrô, caminha até seu prédio; o porteiro abre eletronicamente o portão. Ele entra e, enquanto espera o elevador, dá uma olhada na fatura do cartão de crédito e, depois, na conta de luz.
O elevador chega depois de cinco minutos. Ele sobe. Está cansado; suou o dia inteiro; não vê a hora de jogar-se numa poltrona e descansar um pouco.
Entra em casa. Cheiro de jantinha pronta. Roça um beijo fugaz na testa da mulher. São sempre assim, um tanto solenes.
Os filhos vêm saudá-lo pulando e agarrando-se em suas pernas. Para eles tudo é festa, tudo é motivo para uma nova brincadeira. É véspera de carnaval.
A sopa está quentinha e cai como um bálsamo.
Na televisão, o apresentador do telejornal começa a falar com voz firme e oficial sobre mais um sequestro dos bens públicos.
José toma silenciosamente sua sopa, mal conversa com a mulher que o acompanha à mesa. São sempre assim, um tanto solenes e sempre envoltos em silêncio. E assim haviam vivido a vida vivida.
Ele, um homem rijo, sempre trabalha ignorando calendários e, por aqueles dias chuvosos, andava arrastando uma gripe impertinente e azeda, que afrouxava seu corpo, roubando parte do oxigênio, mas José não prestava maiores atenções. Afinal tinha coisas muito mais importantes para pensar que nem poderia se ocupar de coisas menores como uma gripe sem graça, por mais impertinente que ela fosse.
As crianças correm pelo apartamento indiferentes ao cansaço do pai. Amanhã é carnaval e a TV fala, mostra cenas, uma atrás da outra, num ritmo tão louco que nem dá para prestar atenção. São cores, sons, impactos, vozes, tudo um após o outro. O dia foi exaustivo. Mas, amanhã é carnaval.
Malas prontas. Crianças no carro. Pé na estrada, na busca frenética da casa de praia, lugar que o distancia da doidice da cidade, que o faça merecer descanso, ausência de agenda de trabalho, telefonemas, dificuldades e inseguranças. Hoje tudo cessa. Até as intrigas políticas e o relógio que escraviza.
Só não cessa o "movimento" de veículos. A estrada dorme sob pneus imoveis. Mas vale a ilusão de que haverá sol, as crianças se comportarão como anjos e não faltarão os comes e bebes e, sobretudo paz, fruto espiritual que ele insiste em procurar alhures.
Faróis, congestionamento, buzinas e o possante som do carro ao lado retumba como trovão, mas José sabe que intolerância e ignorância não são apenas palavras que combinam na rima e na métrica. A vida lhe ensinou que a primeira se alimenta da segunda e precisa dela para sobreviver.
Nesse lufa-lufa incessante, José experimenta inefável felicidade: chega ao destino, depois de percorrer os oitenta quilômetros, em cinco horas de viagem.
A casa não é bem o que lhe alugaram, mas nada que uma boa faxina não possa resolver. Afinal hoje é carnaval. José até tentou se comunicar com o dono, mas o celular respondeu por ele: - não me leve a mal, hoje é carnaval!
Agora, nem mesmo a chuva, que cai insistentemente, pode estragar a festa, pois José sabe que o preço da viagem ao Éden pode ser sacrificar alguma coisa e, para ele, a vida é assim, e vai ser sempre assim...
Antes de pegar no sono, luta debilmente: contra o pequeno espaço, contra os odores ruins, contra o trânsito na rua, contra seu próprio destino – que insiste em aparecer no escuro do quarto. Mas aos poucos José vai fugindo das horas ensandecidas pelo cansaço e segue garimpando sonhos, como quem acredita na vida. É hora de iluminar a alma. E assim adormece esse homem que nunca precisa dormir pra sonhar!