Delegacia de Fúteis Arroubos

Para alguém que eu gosto muito.

Fui convidado para uma festa em casa de gente rica.

Já devo ter dito aqui que detesto festas e reuniões sociais. O jogo de flerte. Os amadores. Os metidos a espirituosos quando na verdade não passam de chatos de galocha, as mulheres bêbadas dando vexame e se lambendo com o primeiro idiota que aparece na frente, os gritalhões, os piadistas de salão com suas histórias de humor duvidoso, a competição desenfreada em que um quer e precisa anular o outro, as afetações e maneirismo, a etiqueta forçada, as gargalhadas e risos falsos, os que apenas querem ver e ser vistos e toda essa escumalha escrota que frequenta esse tipo de lugar maçante e fica em profunda depressão se não são convidados. Fui para acalmar a Layla porque fazia dias que estávamos em minha casa, trepando duas vezes por dia, bebendo e vendo fitas antigas e ela já estava com aquela carinha que eu conhecia muito bem. Quando concordei em ir seu rostinho se iluminou e ela foi correndo tomar banho e se arrumar. Fiquei fumando um cigarro jogado na minha cama olhando para teto enquanto ela não desocupava o chuveiro. Frio do cão que faz nessa cidade! Decidi apertar um baseado para ir ficando gostoso. Ela terminou e veio enrolada numa toalha. Quase que pulo em cima da Layla, mas dessa vez um me contive. Minha vez. Demorei uns vinte minutos com toda a operação. Claro que eu estava com a minha calça de veludo cotelê preta, minha camiseta da mesma cor, o suéter idem e os tênis novos que eu tinha comprado numa liquidação na rua XV combinando. Joguei um lenço indiano no pescoço a guisa de cachecol e o abrigo também preto que um dia tinha sido do meu velho. Peguei minha carteira e coloquei meus óculos escuros. A Lay estava linda de jeans agarrados em suas fartas coxas e de botas. O cabelão solto. E aquela boca carnuda maravilhosa e embatonada. Seus cílios também eram longos e seus olhos de um castanho maravilhoso. Fechei o apê e fomos caminhando até o ponto de táxi quatro quarteirões da minha casa. Fumei um pouco da maconha e ela me bateu. Parei no bar de um conhecido e a Layla pediu uma taça de vinho doce e eu um dose dupla de Bourbon que virei de um trago só e logo pedi outra para fazer hora enquanto minha gatinha terminava sua bebida. Virei uma segunda dose e fomos caminhando. Entramos no táxi e sentamos nos bancos traseiros e dei o endereço ao motorista que chegou lá em doze minutos. Paguei em dinheiro e dei gorjeta. Entramos naquele casarão suntuoso cheio e palmeiras, folhagens e palmas nos seus lindos jardins. Tinha até uma réplica da “Vênus” por ali. Tem gente que vive muito bem nessa cidade enquanto a grande maioria trabalha em empregos medíocres por salários irrisórios que não pagam nem o papel higiênico. Coisas da vida, chapa.

Os anfitriões eram sócios do pasquim indecente em que eu insistia em trabalhar por pura inércia nos saudaram jovialmente quando chegamos e nos disserem para ficar a vontade e aproveitar a bebida de graça. Talvez isso ficasse interessante. Vai sonhando. A noite era só uma criança. Ou não? Um garçom cheio de nove horas & salamaleques veio e perguntou se eu ia de uísque ou de vinho. Respondi que íamos nos dois e ele me deu uma olhada estranha. Olhei em volta, já com o copo na boca e vi o mesmo de sempre. Nada muda. Sentamos em uma poltrona longe da turma. Detesto turmas. Detesto movimentos. Detesto burgueses, surfistas, punks, metaleiros, “cidadãos de bem”, comunistas, socialistas, democratas, libertários todos com seus discursos ocos e sua ideologia ultrapassada e reacionária. Nada leva ninguém a lugar nenhum e temos que preencher nosso tempo com alguma coisa desagradável, doentia, desnecessária & deselegante enquanto esperamos todos pelo fim de nossas patéticas existências. Saco. Fiquei de conversa fiada com a Lay enquanto bolinava em suas lindas coxas cobertas por jeans e ela ficava dando carinhos tapinhas na minha mão e eu também lhe sussurrava as maiores sacanagens ao pé do lóbulo da sua orelha esquerda. Ela sorria e olhava para frente enquanto eu encarnava Bocage para o meu bem. O garçom babaca passou novamente por mim e eu peguei duas doses de uísque. Ele continuava me olhando com uma expressão estranha entre a piedade, a condescendência e a incompreensão. De repente uma estranha criatura estava sentada em uma poltrona bem à minha frente. Um gordo vestido com uma roupa espalhafatosa e muitos números menores que fazia transparecer toda a sua banha. E essa coisa falava! Falava tão rápido direcionando seus olhos esbulhados direto para fim que hora tive certeza de que o cara estava louco de um barato qualquer. Eu não entendia patavina, só quando ele dizia “farinha” e gesticulava com as mãos creio que querendo representar um espelho e um prato e um gilete. Cruzes! Gente chata da porra. Se você não está na loucura deles vocês está por fora, amigão. Só que essa gentinha não percebe que é exatamente onde eu quero ficar. De fora. No caminho do meu. Ainda bem que eu julgo o ser humano pelo critério do mesmo ou seria uma carnificina sem precedentes nos anais da história ( para de pensar bobagens, meu! ). A Lay continuava sorrindo e olhando complacentemente para mim e meu pretenso interlocutor. Tentei ser gentil e compreensivo:

-Meu amigo – eu tentava lhe dizer – parei com esse barato branco há algum tempo. Se eu emplacar até agosto vai fazer 19 anos, ok?

Mas, não. O cara continuava falando sem parar e a todo minuto “FARINHA” e o gesto ostensivo. Tentei lhe oferecer uísque do meu copo só que ele ignorou e continuou falando e eu continuei sem compreender nada além dessas duas “palavras”. Meus colhões estavam se enchendo já dessa paranoia que não iria levar ninguém a lugar algum. O cara se levantou de um salto e foi em direção de algum lugar rebolando aquela bundona mole dentro das calças apertadas. Respirei aliviado, matei um copo de uísque e continuei de olho na Lay e lhe falando as maiores baixarias acerca de como eu ia fodê-la gostoso no chuveiro. Ela apenas ria formando graciosas covinhas em suas bochechas e corava um pouquinho. Ela estava gostando, sim. Toda mulher bonita gosta de ouvir umas barbaridades ao pé do ouvido na hora certa. As que não gostam e não admitem são as feias, mal amadas, mal comidas, gordas escrotas, com tetas caídas, com varizes nas pernas, com celulite e estrias na bunda, sem um pingo de bom humor e que não tem nada a oferecer. Essas eu sempre fiz questão de manter a distância e isso é uma conversa que a gente leva na outra vez, valeu? Acendi um cigarro e quando estou dando a segunda tragada lá vem o Gordo novamente em nossa direção, nos fita com seus olhos brilhantes e ávidos, muda de ideia e volta em outra direção. Ótimo. Mais uísque para meu fígado cansado. Já estávamos há mais ou menos meia hora na tal festança quando reparei que uns dois ou três metros de nós haviam pessoas dançando. Em pares ou sozinhos. Só aí que fui perceber que estava tocando “Light My Fire” pelo sistema de som. Puta que o pariu. Essa gente se acha “in”, descolada, modernosa, cibernética e avançada e ainda estão nos Doors? O povo não evolui só piora e fica repetindo a mesma merda ultrapassada a mais de vinte anos e achando que isso denota cultura, conhecimento, sabedoria quando na verdade essa nostalgia serve apenas para manter o “status quo”. Será que eu sou doido e deveria estar trancado em uma instituição confinado na cela acolchoada e babando Haldol vestido no rigor da moda do hospício de branco e camisa de força? Não, acho que sou lucido demais e isso é que faz ficar irado com o próximo. Tão bom você se projetar e olhar todas as situações de fora. Mas kundalini e paciência têm limites. Mais bebida. A Lay bebeu só mais uma taça de vinho e parou. Tirou o cigarro da minha boca, deu uma pequena baforada sem tragar, devolveu-me o bastão nicotizado e ficou brincando de fazer círculos com a fumaça. Gracinha de menina. E eu estava me apaixonando por ela de novo. Muito boa essa sensação. De saber que seu coração ainda não se fechou e não me tornei um velho amargurado e rabugento. Deu-me um vontade incontrolável de mijar. Seria a emoção da Layla sorrindo ao meu lado ou a barril de uísque eu estava consumindo desde o bar próximo ao meu apartamento? Levantei e pedi licença para ir ao banheiro. Encontrei o dono da festa no caminho e pedi informações e ele apontou para a porta. Entrei e tranquei. Abri meu zíper, tirei o ganso para fora, fiz mira e disparei um jato de urina amarela fedorenta de tanto álcool consumido todos aqueles dias. Fiquei analisando aquele lavabo que deveria ter custado muito mais que todo o meu apartamento. Como essa gente consegue tanta grana aparentemente fazendo absolutamente nada e vestindo suas caras roupas? Parecia que quando eu desse a descarga seria lavanda e o quando fosse lavar as mãos as torneiras jorrariam champanha francês ou uísque escocês legitimo. Seria ótimo, mas quando acionei o mecanismo para assear-me saiu apenas água. Fiquei um pouco desapontado, não muito. Uma banheira chiquérrima, tapetes felpudos pelo chão e toda essa onda. Sai de lá e quando – já abastecido de mais dois copos de uísque com aquele garçom esquisito - estava voltando para meu lugar vi um garotão vestido de forma impecável , de cabelinho na moda sentando ao lado da Lay. Ela me viu e captei no ato a expressão. Mais um engraçadinho na “Caipirolândia”. A gente conhece o tipo: riquinho, afetado, nada fora do lugar, sem azar, sem ter que trabalhar duro e com as próprias mãos, mimado, cheio de vontades e com complexo de Casanova. Ah, se você vive você aprende. Se não vive morre. Simples assim. Não precisa ter morte cerebral para bater as botas. O que eu vejo de zumbis andando pelas ruas não está no gibi (vocês vão descobrir a minha idade quando lerem esse conto ). Apressei o passo, virei um copo de um trago só e sentei ao lado da Layla no braço da poltrona e pus a mão nos seus ombros. Ela foi magnânima:

-Esse é meu namorado que eu te falei agora há pouco. Carlo, esse é o...(Não quero me lembrar o nome do idiota.) Ela disse.

- Tá, e daí? Respondi com a minha lendária grosseira que já me safou de situações piores.

- O que você faz? Perguntou o babaca.

-Trabalho em cartório.

-Fazendo o quê? Inquiriu com um tom de voz e olhar petulante.

-Como o cu de veado curioso. Respondi-lhe – Se manda daqui e vai procurar uma vagabunda do seu naipe que essa dama já tem dono. Cai fora. Posso ficar muito violento em casos extremos com esse aqui. Dá o pira e se voltar vai ter seu rabo delicado chutado daqui até o Uberaba. Vaza. Deita o cabelo, porra! (Realmente, vocês finalmente vão descobrir minha idade ).

O carinha me olhou nos olhos pensando seriamente se encarava a parada ou fazia o que eu tinha mandado e talvez o seu bom senso falasse mais alto quando esse se fixou na minha fachada inchada, amassada, agressiva e cheia de cicatriz de bordoadas, socos ingleses, canivetes e empregos medíocres. Foi-se embora e eu voltei a afofar-me ao lado da minha bela dama recém formada em direito que tinha passado no exame da OAB aos 23 aninhos. Continuamos a conversar.

-Coitado do garoto, Carlo. Apenas um menino grande. Eu me apavorei quando te vi porque sabia que você teria essa reação.

-Delegacia de Fúteis Arroubos, baby. Ou seria Delegacia de Falsos Arroubos?

-A poesia não te abandona mesmo! Gostei disso.

-Sou um profissional, amor da minha vida. Fico pensando e criando até dormindo. Vamos nos esgueirar por aí e fumar um basedinho para poder beber mais?

-Maconha e bebida. Layla ralhou. É só nisso que você pensa?

-Não – lhe respondi – Penso em música boa. Literatura. Sexo gostoso e saudável com você. Cachorros quentes com molho e cheiro verde e mostarda preta. Nessas coisas.

-Você não muda, Carlo. Por isso eu gosto tanto de você.

Dito isso fomos até aquele maravilhoso jardim e achamos um banco desses de praça num canto iluminado apenas pelo luar e onde não havia ninguém por perto. Acendi o negócio e mandei ver. Aquela erva era de primeira e eu tinha tido que pagar umas seis cervejas para que Rato e Sabugo me vendessem aquela partida. Valeu todo o trabalho. Quer dizer, nem tanto. Deixa pra lá. Quando já tínhamos fumado metade de um cigarro apareceu outro tipo magro de assustar, de cabelos eriçados com uma calça rasgada no joelho para fazer estilo e pediu um tapa. Eu lhe passei. Na primeira bola ficou falante com uma voz trovejante e roufenha. Parecia o rugido do leão do passeio público e alto do jeito que eu estava me deixou enervado e eu lhe pedi educadamente para me devolver meu baseadinho e falar um pouco mais baixo. O seco se envaretou e me disse que eu não estava sendo educado e que eu era um babaca e que agora a maconha era dele. Eu levantei e tirei o negócio entre os dedos do magrelo e mandei mais um tapa. Soprei a fumaça para o céu e coloquei as mãos nos bolso. Linguagem corporal sempre ajuda antes da munheca. Ele virou as costas resmungando para ele mesmo e continuamos ali curtindo ao ar noturno. A noite é linda. Mas apenas para se ficar a dois. Sair é um problema que se resolve ficando em casa. Profissional é profissional. Isso se aprende com os anos e com a sistemática observação. E tem gente que ainda insiste e cometer o mesmo erro. Eu por exemplo. Será a humanidade neurótica? Ficava mais frio a cada minuto.

Vi o dono da festa vindo em minha direção de mãos dadas com sua companheira e ele trazia uma garrafa de uísque. Passou-me e eu bebi no gargalo. Se você nunca bebeu do gargalo de uma garrafa não sabe o que está perdendo. Só assim você sente o entorpecimento sinistro do álcool. Sua companheira era uma jovem, atraente, e agradável. Um casal rico e bem sucedido que não tinha ficado afetado. Conversamos por umas duas horas e o papo era animado e jovial. Não tinha amarras e nem falsos conceitos. Gente simples que tinha vencido na vida e agora queria cair na curtição e não ficar pensando em pormenores burocráticos como dinheiro. O meu amigo até fez piada sobre a diferença de idade entre a Layla e eu e a Layla riu e concordou que não sabia o que tinha visto num velho escritor desbotado como eu. Eu gargalhava e sua bela esposa me acompanhava. Tomamos o uísque até acabar e voltamos para dentro. Tocava uma coisa monocórdia e monótona em algum lugar. Nem prestei atenção. Essa escoria pensa que é intelectual e na verdade estão completamente por fora. De tudo. Olhei no relógio de pulso da Lay e eram uma e meia da manhã. Cedo para mim. O garçom esquisito passava incansável com sua tentadora bandeja e eu me servia de dois drinques sempre. Layla recomendou com enérgica convicção:

-Carlo, diminua a marcha. Não quero acordar com um morto do meu lado pela manhã.

-Tenho trabalho essa noite? Eu quis saber.

-Se você quiser. Ela me disse. Será que teremos mais diversão essa noite? Eu perguntei.

-Só você providenciar isso por aqui, mas sinto que você não está mais tão inspirado.

-Tem razão. Só matar os uísques e fumar mais um cigarro. Dois neuróticos da guerra para aturar é meu limite por noite hoje em dia. A idade vai chegando, as sequelas se instalando, os cabelos branqueando, a pança crescendo, a paciência diminuindo, a morte se aproximando...

-Carlo Malta, escritor e redator maldito e seus discursos existencialistas! Exclamou a Layla cortando meu raciocínio, graças aos deuses. Quando eu começava ia até o sol raiar e minha bela namorada sabia disso. Ela estava começando a me conhecer muito bem. O que poderia ser uma dádiva ou um perigo mortal. Eu não dava à mínima. Pela primeira vez estava sentindo algo positivo por uma garota. Amor é ego, posse, propriedade, humilhação na mão dos homens. O amor assim como a compaixão é cósmico e estamos muito longe disso. Disse para a Lay chamar um táxi para nós e eu iria ao banheiro descarregar aquele ótimo malte que eu tinha tomado. Quando voltei surrupiei uma garrafa lacrada nas barbas do garçom estranho e escorreguei uma nota de dez reais no seu bolso. “Saída à Francesa”, minha preferida. O táxi chegou em dez minutos e caímos para dentro. A Lay olhou eu colocar a garrafa dentro do bolso interno do meu casaco e riu. Perguntou onde iriamos fazer a saideira e indiquei o bar que tinha sido o ponto de partida para mais aquela noite no meio do inferno. Paramos. Paguei novamente com dinheiro e dei outra gorjeta. Os taxistas e garçons deveriam ter ficado muito contentes com o velho Carlo hoje, foi o que pensai quando entramos no bar semivazio e achamos uma ótima mesa num canto discreto qualquer. Falávamos em um tom de voz mais pausado e baixo. O proprietário me atendeu e eu pedi cerveja e gelo e paguei para ele a “rolha” do uísque que eu tinha carregado. Como a Lay iria me levar para casa era pura mistério. Então eu deixei rolar....

Curitiba, 20 de março de 2011. Quarta Feira. 16:05

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 20/07/2011
Código do texto: T3107476
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.