UMA JANELA PARA LÁ DE INDISCRETA
Na verdade não é uma. São três. Três janelas muito indiscretas. Aquela famosa “janela lateral do quarto de dormir”, verso daquela velha música de Lô Borges e Fernando Brant imortalizada nas vozes de Milton Nascimento e Beto Guedes que tanto sucesso fez e ainda faz nos bares da vida e do qual eu me apropriei para designar o olhar com que passei a ver e registrar o mundo lá fora a que eu, bem “aventuradamente”, consegui a permissão de devassar à vontade a qualquer hora da noite ou do dia a qualquer dia basta estar em casa e olhar para a janela lateral do quarto de dormir, do quarto dos meninos ou da sala de estar. São três maravilhosos portais escancarados eternamente para o deleite e prazer de quem sabe enxergar e sentir além do horizonte.
A cada olhar eu me deixo transportar para outras dimensões, como se uma fresta imensa se abrisse aos meus olhos para que eu possa penetrar outros mundos em viagens de cores, tons, matizes, luzes.
No começo do deslumbramento só tinha olhos para o mar bem no nível do meu olhar. Aquela imensidão toda de verde de não acabar, dum azul de doer, de um cinza esverdeado, de um jeito mesclado listrado em camadas esparsas, trocadas a toque de caixa pra deixar qualquer um zonzo, enlouquecido, extasiado, cismado, pensando como dá tempo de tanto trocar de cores, de vestes, de adornos. E estar sempre lindo, arrumado, de roupa de gala pra toda ocasião.
E naquela amplidão as embarcações pontilhando o mar numa marcação aleatória e efêmera. Elas sempre me surpreendendo. Aparecem, parecem fincar raízes, por uns dias as vejo brilhantes, banhadas pelo sol avermelhado da tarde ou quase ocultas disfarçadas no enfumaçado da bruma das manhãs enevoadas. De repente mudam de posição. Se reviram para lá e para cá, bem devagar, discretamente, como para não chamar a atenção, como em noites mal dormidas a se mexer na cama onde o coxão parece ter espinhos. Ficam de lado. Ou por outras me olham de frente como a me desafiar. Senão, me dão as costas às voltas com o vento que as tange e empurra. Às vezes quase vão às turras. Hurra! É preciso estar firme para não zarpar antes da hora. Por vezes são tantas que formam uma bela composição. Cada uma traz em seus conveses mistérios e segredos de terras distantes nunca dantes imaginados.
Vejo a toda hora e nunca me canso de olhar o Mara Hope que já virou paixão. Eternizado ali na sua condição de náufrago, um status de dar inveja e de chamar a atenção e de aguçar a curiosidade de gente que vem de longe para ver de perto a sua ainda majestosa carcaça. Vista aqui do alto fascina pela mutação das cores que a cor do mar e a luz do sol proporcionam às suas sempre encouraçadas vestes.
Até os espigões que já foram os vilões do mar, aqueles elementos estranhos cortando a praia adentrando ao mar que podem provocar efeitos colaterais ao equilíbrio da dinâmica costeira, no dizer dos estudiosos, zelosos ambientalistas, hoje reabilitados pela ciência que os isentou dessa culpa, chegam a dar na vista de tão belos registrados pelos olhos de vidro, cheios de gente a contemplar o sol morrendo lentamente a cada entardecer.
Saídas diretamente da história da cidade as pontes apontam para um mar de antigamente. Um mar de embarcar para outro lugar, viajar por outras culturas, de glamorosas chegadas e saídas. Das catraias pequenas e insignificantes que, conduzidas por catraeiros forçudos e dispostos, transportavam as madames elegantes das embarcações que atracava em alto mar até a Ponte Metálica aqui à minha frente e a Ponte dos Ingleses um pouco mais à minha direita da qual estou perdendo gradativamente parte do visual pela construção acelerada de um edifício.
Ah! Tanta coisa à minha frente, meu olhar perscruta o horizonte de um extremo ao outro! De leste a oeste. Cento e oitenta graus de puro deleite. É mar que não acaba mais. E eu querendo registrar tudo ao mesmo tempo o tempo todo. Não posso deixar passar nada, perder nenhum lance! Preciso captar esse momento, esse tom, essa cor, esse matiz! Aí quem me viu conseguir ficar quieta!? Correndo de janela em janela para buscar ângulos diferentes. É só o tempo de pegar a câmera (mas onde foi mesmo que eu a deixei?) e dar o primeiro click...daí vem um segundo...um terceiro...um quinto...um décimo sexto...um, dois, cinco...mil. Até perder as contas. Quem já viu?
E o encontro marcado todo dia no final da tarde quando o sol arde...E há quem diga que: “é tudo igual, viu um viu todos”. Santa ignorância! Quanta falta de sensibilidade! E, quem diria! Já fiz até algumas madrugadas para assistir ao espetáculo contrário de ver explodir sua majestade o sol por entre as nuvens inundando de luz os caminhos do amanhecer. Estourando as minhas fotos que ainda não consigo dominar as técnicas para conter tanta luz!
Daí o meu olhar de vidro sobe direto para o anil do céu, meu olhar inquieto quase fica vesgo de tanto ir pra lá...vir pra cá, ora céu, ora mar sem saber onde se fixar. E as nuvens brancas de algodão no seu frenético brincar de trocar de forma, ainda hão de me deixar mais tonta de querer acompanhar sem poder a sua metamorfose.
Ter tudo isso ao meu alcance a qualquer momento foi como uma premiação, o coroamento de toda uma vida vivida e dedicada à contemplação da natureza e à compreensão das coisas que estão aí no mundo bem debaixo do meu nariz. E eu preciso apreender.
Passado o deslumbramento inicial veio a fase de descer o olhar para a terra. Para o chão aqui embaixo, para aquelas caixas pretas, que também como nos aviões, não são pretas, são avermelhados cofres fechados que escondem segredos às vezes inconfessáveis. O que guardam debaixo de suas telhas? Por momentos penso em devassá-los.
Mas não foi necessário. Ao me voltar para o nadir descobri quanta coisa acontece pelas ruas, avenidas, calçadas, telhados, lajes que me rodeiam e que eu vejo daqui do alto dos meus sessenta e seis metros acima do nível do mar – aqui do meu vigésimo segundo andar.
A “olho nu” até que não da para perceber muita coisa. Parece tudo muito normal. Mas quando aproximo o meu olhar travesso, atravesso paredes, devasso intimidades expostas de formas bem inusitadas pelas calçadas mal ajambradas de uma rua onde elas são tudo – quarto de dormir, cassino, motel, local de fumar sem tragar. Tem a turma do carteado. Do baseado. Do quadrado. É quarto, sala, varanda... Sala de estar para conversar, namorar, brigar, fazer as pazes. Todas as fases. Sala de espera de qualquer coisa. Talvez a hora da partida do ônibus que passa aqui perto, pra não pagar hotel. Economizar uns trocados que a vida não está fácil. Um lanche rápido e saudável que ela tira de dentro de um saco plástico verde cana. Uma fruta um melão bem amarelinho de dar água na boca mesmo de longe parece saboroso, parece docinho pela rapidez com que o devorou e ainda repartiu com o companheiro de cama. Ali mesmo no chão da calçada ela partiu a fruta com uma faca que tirou de dentro da bolsa preta pelo visto bem equipada preparada para toda situação. Uma mulher prevenida vale por duas como dizia minha mãe, que Deus a tenha, amém.
Isso tudo acontecendo bem ali embaixo na rua defronte e eu debruçada na janela lateral como que fascinada sem conseguir deixar de olhar e o dedo nervoso a pressionar freneticamente o click da câmera para não perder a chance de virar um paparazzi sem nenhum esforço. Mas também sem o glamour das estrelas de fama mundial, mas uma cena de uma estranheza sem igual. E um detalhe interessante que me chama a atenção: as pessoas que passam na rua parecem não se dar conta do inusitado da situação ou então já estão acostumados com essa cena que não mais causa espanto. Elas passando e eles acordando, se espreguiçando, esfregando os olhos para espantar o resto do sono e fechar os sonhos para que não fiquem a atormentá-los feito alma penada.
Acho mesmo que a segunda hipótese tem sentido pois há poucos dias na calçada em frente do outro lado da mesma rua ao cair da tarde três rapazes dividiram um colchão também meio improvisado - daqui de cima não dá pra saber de que é feito – dormiram, acordaram, confabularam e agilizaram uma seção de fumo...era baseado passando de mão em mão como há muito não via um...assim mesmo no maior descaramento em plena rua, na calçada da fama. Outro dia um casal fez a cesta. Dormiu, acordou, conversou, dormiu de novo...Tudo sob o beneplácito dos transeuntes e moradores da rua que passavam bem em frente e nem faziam menção de olhar nem parar. Com certeza têm coisas mais urgentes e importantes para fazer do que vigiar o que ocorre por perto, como, por exemplo, o carteado dos finais de tardes que presencio aqui do meu observatório privilegiado. São duas mesas próximas uma das outras. Com direito a pano verde com desenhos dos naipes, cervejinha e tira-gosto.
Eles talvez achem muito natural ter pessoas que cultuam o hábito de dormir na calçada. Por que não? Com esse calor tropical parece uma boa! Ou não? Como diz o velho e sempre atual ditado: “gosto não se discute”. Principalmente nesses tempos de conscientização dos direitos individuais e do respeito às diferenças. Que ele venha a prevalecer cada vez mais sobre os fascismos que tanto têm contribuído para a violência e causado tanto sofrimento pelo mundo afora.
Outra hipótese é que pertencem ao meu time dos que vivem e deixam viver. Desculpa o mau jeito que ninguém é perfeito e coerência o tempo todo é chato, vocês não acham?
Tenho também observado por algumas vezes a presença de um casal que se encontra sempre nos finais de tarde e fica o tempo todo escorado nos muros da calçada trocando de pé num determinado ponto da rua, bem pertinho da cama dos rapazes do “fumacê”, como se dizia um tempo atrás. Enquanto eles alternam rápidas manifestações de carinho com brigas que chegam a provocar tapas na cara par lá e para cá fico imaginando a razão de terem escolhido aquele local para namorar. E com base em tudo que já vi e vivi nessa minha vida sei que eles devem ter algo a esconder. Um dos dois ou ambos quem sabe, tem compromisso sério com outra pessoa. Ou, por outro lado, como ela aparenta ser bem mais jovem numa diferença de idade considerável, é muito provável que a família não faça gosto no namoro o que os obriga a viver se escondendo pelos cantos. Por sua vez ele talvez seja um cara inseguro, ciumento o que explicaria as brigas constantes e as discussões passionais tão acaloradas.
No final de tudo eu concluo que naquele pequeno universo ao alcance do meu olhar por trás de uma lente que me permite trazer para mais perto o que estaria normalmente vinte e seis vezes mais distante está representada a vida. A vida como ela é. Em toda a sua amplitude. Com suas estranhezas, seus mistérios, seus segredos, dificuldades, inquietações, amores, dissabores, alegrias. Nada tão estranho que já não tenhamos visto, vivido, sentido alguma vez na vida. Nada que possa escandalizar. É a vida na sua pujança. Tristezas, alegrias, esperanças, desilusões. Fazemos parte da mesma trupe de um circo mambembe que percorre a mesma trajetória inexorável e o repertório é quase sempre o mesmo. Só que cada espetáculo tem as cores, as dores, a dramatização, os humores que são a nossa cara, a cara que cada um de nós lhe empresta. De resto somos nós que fazemos a nossa vida com as nossas escolhas.
Onde estou agora folhas de árvores levadas pelo vento não vão passar diante da minha janela a não ser num forte vendaval.
Mas não faz mal. Há vendavais que vêm para o trem.