Dança das cadeiras

O sol de meio-dia castigava lá fora. Aqui dentro, contudo, a única coisa que o lembrava era a luz que entrava pela janela. Três senhores, vindos do salão principal, decidiram continuar sua prosa ali, ao lado da longa janela.

-Uma pena, uma pena...

Dois permaneciam em silêncio, um enxugava o suor com seu lenço azul.

-Ele parecia tão vivo nesses últimos dias! Se alguém me dissesse que Salignac ia morrer no começo dessa semana eu não acreditaria! Juro de pés juntos!

-Infarto fulminante..

-É, chega uma hora na vida que ela deixa de nos dar presentes para tirá-los...

Silêncio por um instante. O mais magro, encostado na janela, quebra o luto de conversa com um causo:

-Lembro de uma vez que ele me contou a sua fórmula para ser tão esbelto aos 70 anos. Ele dizia que começava a escrever um livro e passava a tarde e a noite na sua escrivaninha, concentrado no bendito livro! Não lanchava, não beliscava nada. Só saía do seu escritório para beber água. "Escrever um livro sobre amazonologia: eis aí minha receita de dieta!"

Os três riem, mas em intensidades diferentes. Uma nova pausa. O sujeito mais moreno e com longos e grisalhos cabelos decide falar de um novo assunto:

-Roberto me disse que já existem três candidatos para a vaga da cadeira dele: Elano, Afonso Santana e Manuca.

Elano Maciel era um militar aposentado, foi da Marinha, viajou por todo Brasil, mas voltou para sua terra natal. Sujeito de voz mansa, ninguém juraria que ele é um desses boêmios de carteirinha e que numa rodada de cerveja é capaz de topar qualquer desafio. Agora velho, passa horas lendo os livro que comprou quando servia e não teve tempo de ler. Fez-se leitor e logo após escritor. Já lançou cinco livros.

O outro concorrente era um deputado estadual, páreo duro portanto. Afonso Santana nasceu aqui na capital, integrou-se no movimento estudantil e foi para São Paulo participar das manifestações contra a ditadura. Lá ficou por 20 anos, lá construiu sua carreira como político. Esse mandato é o primeiro no qual ele representa o Amazonas. Carrega a figura de um senhor respeitável, tem 69 anos, e um carisma incrível.

Manduca provavelmente é o Manuel Fernandes. Um cara que se você deixar, fala até o Natal. E sem respirar! Manduca é jornalista, foi radialista nos anos 90, mas hoje trabalha para um tablóide local. De uns tempos pra cá desandou a escrever. Deixou as crônicas de lado para falar da literatura, da poesia. Mas ele faz algo muito experimentalista.

-Santana já ganhou, disse o senhor de camisa branca e óculos fundo de garrafa de frente para o velho magro encostado no parapeito da janela.

Este retruca: isso que me dá nos nervos. O sujeito tá pisando aqui agora! Depois de 20 anos! Já de cabelo branco! Nem bem pisa já é eleito cidadão honorário e coisa e tal!

O senhor moreno pede para que ele abaixe um pouco a voz, afinal o corredor é muito grande e tudo aqui ecoa fácil.

-A vida é assim. Lembre-se de Getúlio Vargas, meu amigo. Foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras. Política faz parte do nosso silogeu...

-Politicagem, você quer dizer. Política é defender interesses, aqui não estamos defendendo interesses, estamos é paparicando um cara!

Novamente o senhor de cabelos longos faz sinal para que ele mude o tom de voz.

-Mas estamos defendendo um interesse sim, o interesse da academia. Santana é um homem que tem recursos, que está lá dentro do poder,em uma outra esfera, pode ajudar a valorizar mais esse espaço...

-Mas para isso ele não precisa estar dentro da academia, fingindo que escreve algo. E tem tanta gente aí que conhecemos que tem o mesmo poder, porque não podemos recorrer á eles, em?

-Não é o suficiente...

-Marcos, nós estamos sendo é enganados: eles ganham status e a (começa a sussurrar) diretoria ganha dinheiro. Vai tudo pro bolso deles. Você sabe disso, todo mundo sabe disso. Mas chamar mais um cara para financiar a casa e os carros do Natanael é abusar da ganância, viu!

O interlocutor fica quieto, aceita as palavras, embora elas causem desconforto. Afinal, Natanael Ramos é seu amigo de infância.

O homem moreno de cabelos longos se arrepende de ter iniciado essa conversa, mas quer aliviar um pouco a tensão que sobrou do papo.

-Eu fico com pena do Elano. Pô, ele já tá há uns sete anos tentando conseguir uma cadeira.

-Elano é um azarão!

-Mas eu acho que ele já é um imortal por tabela, porque ele tá sempre por aqui. Ele já adquiriu nossa imortalidade por osmose.

Os três riem.

-Mas mesmo assim, de todos, ele é o que mais merecia.

-Talvez nesse ano ele consiga alguma cadeira...

-Mas essa é perfeita para ele: a cadeira do João Alberto Salignac! Ele é o guru de uma geração, ele tinha uma preocupação enorme com a região...

-Você acha que o Elano pode ser o guru da nova geração?, pergunta o senhor em frente ao magro para o moreno.

Ele titubeia e então responde:

-É difícil dizer... ele é pouco conhecido agora. Mas ele pode ser sim. Desde que seja uma geração de pesquisadores, porque ele é melhor como memorialista.

O magro toma a conversa:

-Quem vai ser o guru de uma nova geração é o Manduca, viu? Com aquele ar de hippie com Jô Soares e aquelas crônicas dele, o bicho vai cair no gosto da garotada. Pode ver, quem mais lê ele são os jovens. Ele disse pro Roberto uma vez que no seu blog - pois é, ele tem um blog- que quem mais comentava seus textos eram os adolescentes.

-É por causa desse jeito dele...

-É, ele quer é se legitimar. Por isso tá concorrendo. Se ele não tivesse o Cézar B. como padrinho, ah rapaz, ele já era.

-Quer ver que quando o Santana ganhar ele vai escrever um artigo criticando a academia? Dizendo que nós somos decadentes, elitistas e safados!

-Mas nós somos mesmos! Ué, o Santana não vai ganhar? A gente não se reúne de vez em quando pra tomar um chá da tarde e inventa o pretexto que é pra um sarau? Meu amigo, não tem livro que defina melhor o que acontece entre essas paredes do que aquele do Jorge Amado. O Farda, Dolmã... não, Casaca... Farda, Casaca...

-Farda, Fardão e Camisola.

-Isso! Tá ali o belestrismo, a politicagem, a decadência, a safadeza toda!

-Mas o Jorge Amado acabou sendo nomeado imortal também, vê se depois disso ele reclamou.

O senhor moreno emenda:

-Tem aquele conto do Kafka também, aquele que o macaco se apresenta á uma academia.

-Esse também é bom, bem expressivo. Sabe, ás vezes me dá um desconforto, uma certa alergia em ver essa dança das cadeiras. Mas apesar de tudo aqui ainda temos um pouco de cultura. E é importante aproveitarmos nossos oásis de cultura, porque eles estão cada vez mais se acabando.

-É verdade.

-Verdade...

O senhor em frente ao magro encerra a conversa batendo as duas mãos em uma sonora palma acompanhada de um convite:

-Então! Vamos dar um pulo lá no Bar da Etelvina? Tomar uns cafézinhos ou umas cervejinhas?

-Opa!

-Ô se vamos!

Os três deixam o corredor, onde ventila o ar e a luz penetra no casarão graças á janela, e passam pelo salão principal antes de saírem definitivamente do prédio. No salão principal, na parede ao fundo, estão os quadros de todos os presidentes do instituto. Mais um dia ouvindo as velhas ladainhas sobre status e arte que se acostumaram a ouvir, tanto em vida quanto na morte.