MORRER

O dia estava radioso, na estrada bem conservada o asfalto parecia um tapete estendido me convidando a aumentar a velocidade, principalmente, porque parecia que eu era o único usuário, que ela tinha sido feita exclusivamente para mim.

Imaginei-me numa pista de moto velocidade, com uma daquelas máquinas que, quando estamos sobre ela vira tudo uma peça só.

Máquina e condutor se fundem e se confundem na velocidade alucinante.

Aumentei a velocidade, o vento morno entrava pelo capacete e zunia em meus ouvidos aumentando a sensação de prazer que apenas os que já experimentaram pilotar uma moto de 400 cilindradas podem definir.

Do lado direito da pista, um casal de bem-te-vis estava perseguindo um gavião que momentos antes, desavisadamente, havia se aproximado do ninho com a explícita intenção de transformar em jantar os ninhegos implumes.

A cena apesar de corriqueira é até certo ponto hilariante. Os bem-te-vis bem menores que o gavião, portanto com maiores possibilidades de manobras rápidas em vôo, dando bicoradas na cabeça do predador que, sem alternativa, procura afastar-se o mais rápido possível daqueles pais enfurecidos.

Para melhor apreciar a cena, tirei o capacete enquanto acelerava mais um pouco para poder acompanhar de perto o embate das aves.

A roda dianteira ficou presa num enorme e profundo buraco na pista e eu, em obediência à Lei da Inércia de Newton, fui catapultado para frente.

Inicialmente rolando depois sendo arrastado até que o atrito me fez parar, deixando no asfalto o rastro de pele, musculatura e sangue, muito sangue.

O capacete que estava na mão, continuou rolando até perder-se no acostamento enfeitado com capim florido de cor de rosa.

Tentei me mover, mas o corpo não obedeceu à ordem do cérebro. Tentei levantar o que restava do braço, nada.

Tentei as pernas, elas também não obedeceram.

O queixo estava sobre o ombro direito.

Lentamente movi a cabeça para o lado esquerdo. A luz do sol feriu meus olhos.

O diagnóstico se desenhou em minha mente. Tetraplegia por traumatismo da coluna cervical com possibilidade de secção da medula.

O sangramento intenso provocado pela destruição dos vasos dos tecidos lesionados me levou a semi inconsciência e a sensação de leveza.

A taquicardia resultante da descarga de adrenalina no sistema circulatório para compensar a perda exagerada de sangue, foi cedendo até se transformar em fibrilamento e a consequente parada cardiorrespiratória.

Eu estava clinicamente morto.

Senti, por todo corpo, como se estivesse retirando uma fina camada de filme plástico e agora eu era dois.

Ao mesmo tempo em que eu estava deitado no chão, com o corpo contorcido, a perna esquerda sob o corpo e a direita estendida com o enorme corte desde a virilha até o joelho provocado pelo espelho retrovisor da moto.

Possivelmente esse corte teria atingido a femoral que me fizera ficar exangue. Os dois braços com fraturas expostas e o corte acima das sobrancelhas, tinha arrastado o couro cabeludo para trás, deixando à mostra a caixa craniana.

Nenhum equipamento de proteção. Até o capacete fora tirado momentos antes do acidente.

Entretanto eu estava ali, de pé, ileso, vendo tudo aquilo como se não fosse eu mesmo.

Pensei, isso é sonho. Não tem motivo para preocupação, daqui a pouco eu acordo e essa cena terrível acaba.

- Não dessa vez! (procurei ver de onde vinha a voz) você acaba de desencarnar. Seja bem vindo de volta.

- Peraí, eu não posso morrer agora. Tenho um filho para criar...

- Devia ter pensado nisso antes de cometer o suicídio...

- Que conversa é essa, rapaz! Eu cometendo suicídio? De onde você tirou essa idéia?

- Olhe o que você fez.

- Mas eu só estava passeando de moto.

- Você quer que eu acredite nisso? Beber vinho durante o almoço e sair de moto só com o capacete. Sem conhecer a estrada, acelerou a moto até a velocidade máxima exatamente quando estava sem ele. Eu entendo isso como tentativa de suicídio, como artifício para por fim a existência terrena.

- E por que você não me alertou?

- Você não é inocente, sabia muito bem o que estava fazendo, encarou os riscos e optou por assumi-los. É o seu livre arbítrio.

- Que anjo da guarda de péssima qualidade eu fui arranjar...

- Eu não sou seu anjo da guarda. Sou sua consciência...

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- Papai! Acorde, papai! Já estou pronto para ir para o cinema que você prometeu.

- Vamos sim. É só tomar um banho rápido para espantar o sono.

- Vou buscar meu capacete na casa de Juninho...

- NÃO! NÃO, MEU FILHO! Hoje nós vamos andar de ônibus. Você vai ver como é divertido...