O Infeliz Passageiro Felisberto
Era segunda-feira, precisava dizer que era o seu pior dia? Pois bem, saíra de casa sem tomar café e caminhava em direção ao ponto quase arrancando os paralelepípedos, a cara amarrada por trás daqueles bifocais, cujo detalhe das lentes parece uma risadinha. Mas, o dono, ao contrário, nunca ria a essa hora da manhã. Era assim que começava a rotina de Felisberto, morador da zona urbana de Feira de Santana, cujo estado de ânimo nunca fazia jus ao nome, principalmente quando tinha que pegar o ônibus. Onde fora condenado a passar algumas horinhas do seu dia, “esmagado, sufocado” – Como se imaginava ele, cada vez que pegava a condução para o trabalho ou de volta pra casa.
Aos domingos ia a pé ou de bicicleta ao supermercado ou qualquer lugar possível, tudo para não ter que andar de ônibus. Táxi? Nem em delírios! Dizer que Felisberto era um homem econômico seria puro eufemismo. O único gasto supérfluo ao qual ele se permitia era com a sua “fezinha”, que era sagrada. Investir na sorte poderia garantir o sonho do carro zero e o adeus ao coletivo lotado.
Se para ele o transporte coletivo era o inferno o ponto de ônibus seria o purgatório. Iniciar o dia ouvindo “olha o vale, vale-transporteeee” ou os cobradores de vans que gritavam: “Vai pa’ rua?”, já era o suficiente para aflorar seus calundus. E se alguém lhe perguntasse as horas ou se o ônibus que fazia a linha tal já tinha passado, ele apenas ignoraria pra não se contrariar mais, ainda teria que sobreviver ao empurra-empurra na hora de tomar o coletivo.
O ônibus ia sempre daquele jeito, passageiros carregados a vácuo e ele já entrava logo olhando os outros com desdém, se pudesse cobriria o corpo de espinhos para ninguém se encostar nem passar roçando nele. Parecia que todo mundo cheirava mal e já àquela hora era puro suor. E quanto mais cheio estava o veículo mais o motorista parava para pegar passageiros. Raramente descia um filho de Deus e era ouvir: “Abre o fundo motô!” Apesar do asco que lhe causava esse coloquialismo, ele até se animava, acreditando que teria algum alívio. Mas, que nada! Era aquele inferno! A mosca da música de Raul Seixas, “Você mata uma e vem outra em seu lugar”. Felisberto gastava as comparações: “parece uma lata de sardinha”, “isso é um navio negreiro” ou “é um carro de bois” (quando o motorista pisava bruscamente no freio).
...E chegando mais gente. “Arrasta esse buzu, motô!” – gritava alguém na maior algazarra.
Felisberto, em pé, suava por cada orifício e nem podia vacilar em pegar o lenço para enxugar o rosto, se soltasse a barra de ferro uma outra mão rapidamente tomaria sua vaga, sem chances de retorno. Praguejava em pensamentos, xingava a mãe, a irmã, a madrinha ou qualquer parentesco feminino do cobrador e do motorista. E para romper a monotonia um estudante de pré-vestibular soltou uma piadinha:
-Ô, motorista? Você não estudou que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço?
E o motorista, sem perder a piada respondeu rindo:
-Já ouviu falar em milagre? Pois é, aqui cabem dois, três, quatro no mesmo espaço, é que nem coração de mãe.
Dessa vez, Felisberto não agüentou o deboche, resmungou entre dentes:
- Só se for da sua mãe, seu filho da puta! – mas, falou tão baixo que nem foi ouvido.
A coluna lhe doía até o cóccix, deu uma olhada ao redor, era início de mês, o ônibus cheio de idosos que iam receber a aposentadoria. “Diabo desses velhos!” – dizia para si, odiando o fato de haver tantos lugares ocupados por idosos.
Percebeu ao seu lado um menino de uns oito anos sentado junto da mãe. Olhou novamente com aquele rabo-de-olho, fuzilando o menino e a mãe. Esta por sua vez, entendeu a mensagem muda e puxou o filho para o seu colo dizendo-lhe:
-Vem, filho, dê lugar a esse senhor idoso – enquanto olhava de relance para a nuvem acinzentada que cobria a cabeça semi-calva de Felisberto.
Ele prontamente aceitou o lugar sem ao menos agradecer, com a desculpa de que o comentário o havia ofendido. “Idoso? Era só o que faltava!” – Indignou-se.
A medida que diminuía a distância para o trabalho seu mau-humor aumentava. “Ainda compro um carro!” – pensou verificando as horas, estava quase atrasado como toda segunda-feira. Ia entrar na empresa como um raio, passar o cartão e subir as escadas de ferro num impulso só.
Porém, esta segunda-feira não seria a de um “quase atraso”. O ônibus seguia pela Avenida João Durval quando de uma rua transversal, partia um carro na direção do ônibus. Bateu levemente de lado, sem prejuízos para o coletivo, já o motorista do carro perdeu o controle e se chocou de cheio contra um muro.
O ônibus inteiro assistiu ao acidente, com a boca cheia d’água, aquela ânsia humana de ver a desgraça alheia e contemplar a carnificina. Sedentos por não perder nenhum detalhe, espremiam os passageiros que estavam do lado que dava vista privilegiada ao quadro lá de fora.
- Você viu, menina? Estraçalhou o carro, imagine como não deve tá o coitado... – lamentava uma.
- Misericórdia! – exclamava outra senhora fazendo o sinal da cruz.
O zunzunzum continuava, enquanto olhos entre curiosos e piedosos espiavam pela janela. Felisberto, era uma exceção, não dava a mínima para o ocorrido, nem queria saber qual era a cor nem a marca do carro, ou se o motorista estava vivo ou morto. “Antes ele do que eu”, seria um pensamento típico dele. E ainda mais rabugento, olhava o relógio a cada segundo, até que uma senhora obesa e de baixa estatura aproximou-se do seu assento pra também assistir a catástrofe. Os seios caindo sobre o braço de Felisberto, toda inclinada por cima dele, os olhos vidrados à janela. Felisberto explodiu:
- Dá pra senhora tirar as tetas do meu braço?
A pobre dona, encolhendo o busto avantajado, envergonhada e humilhada, afastou-se meio chorosa. Alguns estudantes riram e as pessoas de mais idade menearam a cabeça em desaprovação.
“Gorda ocupa muito espaço, deveria pagar duas ou mais passagens. Ou nem deveria pegar ônibus.” – Pensou ele e dessa vez quase deu um riso sarcástico, sem se importar com a cena lá fora.
Após prestar apoio ao acidentado, chamando a ambulância, o motorista volta ao volante aflito.
Felisberto agonizava no assento, atrasos não eram tolerados pelo novo gerente geral, fosse qual fosse o motivo. Ia ser demissão na certa, ele já estava sob aviso...
Aqueles egoístas de lá do trabalho nunca davam carona. Sua sina era pegar o ônibus, era enfrentar o engarrafamento, encarar as gordas e aquele aperto insuportável do coletivo.
Meia hora depois do acidente, enfim, Felisberto descia do seu “Trem Fantasma”. Após tantas torturas, exclamava internamente: “Ainda compro um carro!”.
Adentrou os portões da empresa feito um demônio da Tasmânia. Ao subir as escadas, uma recepção diferente da esperada, as moças do telemarketing enxugando as lágrimas timidamente pelo corredor, uns sussurros, e alguém pergunta:
-Já avisaram à esposa dele?
-Estamos providenciando tudo. Gonçalves desceu pra pegar o carro, vai dar a notícia pessoalmente à esposa e o Rubens já entrou em contato com a funerária e seguiu para o hospital.
- Que houve pessoal? – entrou Felisberto no círculo de lamentos...
E o encarregado do setor de compras dando-lhe uns tapinhas nas costas explicou:
- Nosso gerente geral sofreu um acidente de carro e... já chegou morto ao hospital, traumatismo craniano. Pois é companheiro... é fogo, heim! Perdemos um grande líder. Apesar do pouco tempo aqui, já era admirado por todos – e deu outro tapinha de leve com o semblante meio hesitante como quem tinha algo mais a dizer.
Felisberto sentiu um quê de alívio interior, o fato de ter sido o seu chefe a vítima do acidente salvara sua pele. O atraso que poderia custar-lhe uma demissão estava perdoado. Deu um abraço no colega escondendo no paletó do amigo um leve ar de satisfação. O outro, chamou-o a parte, para uma revelação em um tom de voz ainda mais baixo:
- Olha amigo, eu nem sei se deveria te contar isso agora... Mas, ontem, eu estive na sala dele, o homem me contou em segredo... que ia te promover...
Felisberto mudou de novo a fisionomia, seu rosto, sem nenhum vestígio de tristeza solidária, ficara rígido. Foi-se a oportunidade de ter um aumento, melhorar de vida, comprar o tão almejado carro. Meio confuso com tamanha notícia, seus sentimentos eram um mosaico de ira e frustração. Apenas pensava na sua oportunidade de subir de cargo... Atropelada por um ônibus?!
Não houve expediente na empresa, os funcionários foram dispensados em luto ao gerente.
Em casa, Felisberto entrou cabisbaixo, a chance perdida, era tão difícil ser reconhecido naquela empresa, tantos anos trabalhando no controle de qualidade e nem carro tinha. Quando alguém, enfim, se dá conta do seu esforço, a morte, num golpe fatal, arranca-lhe a vida e de Felisberto, a glória. “Perdemos um grande líder”, repetiu para si mesmo as palavras do colega. Sua esposa, de súbito, interrompe seu devaneio:
-Beto? Chegando cedo pro almoço, que foi?... – ao que ele não responde, vira para a mulher fazendo muxoxo, sem mirar no rosto, apenas passa os olhos naquele corpo tão maltratado pelo tempo, enquanto pensa: “Se ao menos eu tivesse uma amante! É...Sem carro tudo é mais difícil”.
A mulher, indiferente ao amuo do marido, continua o papo, metralhando as queixas sobre as contas de casa que não foram pagas, o gás que estava por acabar, e em seguida, mudando de assunto, acrescenta:
-Ah, rapaz, e não é que teu chefe teve aqui de carro logo depois que tu saiu! Perdeu uma carona da boa hoje, né?
Ivana Oliveira, 13/08/08.
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