ALGEMA
O canavial cobre o vermelho da terra, tapete verde fabricado por mãos hábeis. Agulhas fincadas no duro chão dessa terra roxa. O sol envelhece a nossa pele, tudo é trabalho. Para as aves que guardam algum parentesco com os dinossauros a falta de mais colorido sinaliza a extinção. O silêncio precede à fome matinal. Nos galhos da mamoneira as galinhas avisam em algazarra que é hora do trato. A extinção está sempre próxima, nunca se sabe.
De longe se avista o terreiro que separa as duas casas. A eira da casa maior, caiada de branco, aponta na história um passado sem memória. Sem função quase, já foi guarda-volumes no tempo em que a cana de açúcar descansava antes de seguir seu destino. Quem aprendeu perdendo diz que a casa grande está sem eira nem beira, os cômodos não tem serventia, guardam lenha seca e ratos. O pequeno quintal da casa menor, diluído, chega até a mata de cerrado alto segundo a classificação geral que consta dos compêndios da Geografia. Aqui moram Marta e sua irmã. Atlântico é o terreiro vazio.
Vivem sem os pais que morreram e sem o irmão que se ausentou. Ele casara-se com uma professora, moça da cidade. Quem conta diz que ela o levou embora tão jovem.
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Marta cozinha hoje, dizer isso é dizer nada. Muito já faz desde pequena sem que haja tempo para pensar na vida, ou na morte. Ou nas mulheres que vivem do que herdaram de seus homens. Serve ao tempo esperando quem lhe reconstitua o caminho que ficou por ser escolhido.
Ainda de jejum, porque hoje é dia santo, Marta prepara almoço especial. Carneiro recheado. Separa os grãos da palha enquanto a lenha ferve a água, não para o café que hoje não bebo. Água fervente para limpar o couro do animal até que volte a parecer recém-nascido.
Marta trabalha enquanto sua irmã, ainda na cama, sonha. Dorme sono leve de silêncio monolítico, abandonada. No sonho turvo vê o pai ressuscitado que estende a mão e bate à porta com vigor. Num só tempo porta e telhado são arrancados, desaparecem. A lua então ilumina a sala deserta. No sonho o pai aponta o indicador e diz sem mexer os lábios: “Escolheste a melhor parte”. Lá fora, do sonho, na soleira da porta um homem chama. Engravatado, maleta de couro na mão esquerda e algo de rapina no olhar o horizonte.
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Não importa saber o que a vida reservou a este homem longe desse terreiro. Está e chama. O gesto demonstra a universalidade de alguns acenos sobre as palavras mais essenciais. Há doze anos ele partiu sem deixar mais que saudade. Sua fisionomia está mudada. Não reconhecemos na altura de seus ombros aquele que foi. Está e chama. Não parece o irmão de Marta, é. Bate. Vem acordar aquela que sonha e essa que ainda não descansou. “Não devia aparecer ninguém”, Marta pensa e corrige, peca e pede perdão. “Carneiro é comida para mais de três”. Vai ao quarto porque sozinha não tem coragem de atender voz de homem e dá com os lençóis vazios. Antes de limpar das mãos os pelos do animal escuta o grito da irmã: “Lúcio!”.
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O que traz de volta o filho à casa dos pais, falecidos é preciso repetir, está na maleta que carrega. Uma ordem de compra e venda para a casa, o terreiro, o quintal, a mata, e tudo. As memórias desse lugar no rés do chão.
Vai ouvindo... “Será melhor assim. O progresso chega para todos. A cidade será construída inteira de uma vez. Planejada em cartório com papéis, carimbos e recibos. Tudo vendido para os estrangeiros, do Cruzeiro até a Cabeceira das Águas Paradas. Trabalho de engenheiros da capital. Já tem quem vai construir fábrica e fortuna. Tem gente que ouviu a notícia e pôs o pé na estrada. Vai ser bonito de dar gosto. Ruas paralelas cortadas por avenidas largas. Árvores só nas praças que serão muitas. A igreja será matriz de Nossa Senhora. Sem terreiro, sem poeira, só o asfalto e as calçadas bonitas que lembrarão as de Lisboa. É um consórcio como nunca se viu. A publicidade trouxe homens do mundo inteiro. Japoneses, italianos, franceses, ingleses, holandeses, e alemães. Esse projeto vinga, já vêm aí os trilhos e a fumaça. Operários estão cortando os batentes perto do boqueirão. Não tem mais que ficar, aprende a esquecer. Nosso pai morreu, entrega a casa para ela cair no chão. Tudo vai ser diferente.”
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Marta escuta e não vê o irmão. Não tem parada. Rasga a barriga do animal, tempera. Substitui o vazio do interior do bicho por carne picada e lentilhas e cebolas e manjerona e sal. Marta não para. Da janela avista a mata e o quintal que chega até à varanda. Da mamoneira sua avó extraía óleo para curar feridas do mal que ninguém via, depois benzia e rezava. Marta tem os olhos fixos na terra seca, sente o ventre seco. Na mata distingue uma árvore bem mais alta que as outras, uma jangadeira. Tem cipó nela que não acaba mais. Marta olha tudo e não pode ver que é o resto de um tamanduá morto semana passada que atrai os carcarás.
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A porcelana antiga já foi tirada da cristaleira, a mesa nunca estivera tão bonita. Sentado na cabeceira, Lúcio sorri atento. Espera. Sobre os três paira um silêncio desconfortável. Marta serve, esboça um pensamento. “O canavial alimentou esse carneiro”. Era a verdade. O trabalho na terra gerou riqueza, deu frutos e o tempo engoliu os mais doces. Marta envelheceu trabalhando para cuidar das realizações dos dois irmãos. A carne macia na boca de Lúcio tornou-se amarga. “Alecrim de mais”, pensou. Comeram como reis em véspera de batalha. Nada mais foi dito até que Lúcio se levantou. A maleta esperava com os documentos. Ele seguiu em frente e determinou: “Assine os papeis, volto ainda hoje para a capital”.
Então Marta ergueu os olhos, serena, baixou as mãos sobre a mesa e disse: “Meu irmão, somos três à sombra de recordações. Não me resta muito, tudo que eu tinha colecionado você veio desfazer. No tempo que esteve ausente minhas mãos esperaram seu retorno. Todo dia desejei também ir embora. Fiquei para cuidar. Fiquei porque estou plantada como jangadeira na mata e me alegro de escolher ficar. Leve sua irmã, na capital ela terá o mesmo futuro apressado. Na casa dos meus pais há encantos que você desconhece, eu fico. A casa, o canavial, o terreiro e a mata ficarão no mesmo lugar”.
Baltazar Gonçalves